A Bienal de São Paulo é a principal instituição de arte contemporânea brasileira, com grande reconhecimento mundial e que traz ao Brasil artistas do mundo inteiro. A 34ª Bienal: Faz escuro mas eu canto dá destaque, pela primeira vez, à arte de povos originários, com nove participantes de diversas partes do globo.
O tema do colonialismo aparece em enunciados da exposição e em diversas obras, como HeadHandEye da artista norueguesa Hanni Kamaly, em que imagens e histórias revelam as pesquisas da artista sobre como paradigmas coloniais -e seus resíduos- podem ser encontrados em monumentos públicos, discursos científicos e coleções de museus. Também em Unsettled objects, de Lothar Baumgarten, a obra de Victor Anicet, Sung Tieu, Sueli Maxakali, Sebastian Calfuqueo, Paulo Nazareth, Paulo Kapela, Naomi Rincón Gallardo, Antonio Vega Macotela e tantos outros.
Entretanto, a Bienal dos Índios, repleta de obras criticando os sistemas coloniais, não encontrou espaço para artistas que ainda vivem sob ocupação e lutam diariamente pela liberdade do território ocupado; como os palestinos e os saarauis. Esses artistas poderiam usar a Bienal para expor a realidade colonial, ainda no século XXI, que vem acompanhada de sistemáticas violações dos direitos humanos na Palestina e no Saara Ocidental.
Uma das artistas de destaque desta Bienal, e que inclusive teve uma exposição individual na Casa do Povo, nasceu na Palestina histórica, mas não a representa e não representa seu povo. Trata-se de Noa Eshkol (1924, Palestina – 2007, Israel), artista, coreógrafa, dançarina e professora. Na década de 1950, juntamente com o arquiteto Avraham Wachman, Eshkol desenvolveu um sistema de notação do movimento que, através de uma combinação de símbolos e números, permite anotar os movimentos do corpo e organizá-los em categorias, passíveis de análise e repetição. A partir desses estudos, Eshkol desenvolveu diversas coreografias que não dependiam de acompanhamento musical e de figurino.
Em 1973, quando um de seus principais dançarinos foi convocado para o serviço militar na Guerra do Yom Kippur, Noa interrompeu seu trabalho na dança e iniciou a produção dos Wall Carpets, expostos na Bienal. “Essas composições, que variam entre abstrações e naturezas-mortas, surgiram do desejo da artista de fazer algo que não envolvesse uma decisão intelectual”, diz a descrição da coleção de obras na Bienal.
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“Muitos dos valores e modos organizacionais que percolam através do trabalho de Eshkol podem ser atribuídos à influência do kibutz com sua fusão de crenças utópicas, sionistas e socialistas. Os pais de Eshkol participaram da fundação de Degania Bet, o kibutz no qual ela nasceu, com o pai de Eshkol, Levi Eshkol, passando a ser o terceiro primeiro-ministro de Israel. O legado de Eshkol também pode ser visto como uma contribuição para um conjunto de práticas culturais israelenses distintas que foram desenvolvidas nas décadas de formação do país”, diz o texto descritivo do catálogo da exposição SHARON LOCKHART/ NOA ESHKOL no Museu de Arte do Condado de Los Angeles.
Noa Eshkol nasceu em 1924, no Kibbutz Degania Bet, um dos primeiros assentamentos de colonos judeus na Palestina. Um dos fundadores dessa comuna sionista foi justamente seu pai, Levi Eshkol, que posteriormente tornou-se o terceiro primeiro-ministro de Israel, de 1963 até sua morte em 1969, e o responsável pela Guerra dos Seis Dias.
Em 1 de junho de 1967 ele nomeou o general Moshe Dayan como Ministro da Defesa. Quatro dias depois, Israel atacou e destruiu as bases da força aérea egípcia, avançou posições no Sinai e ocupou a Cisjordânia, a Faixa de Gaza, o Sinai e os Montes Golan, bem como as partes orientais de Jerusalém. Mais 250.000 árabes palestinos tornaram-se refugiados, a maioria dos quais agricultores não combatentes e as suas famílias.
Levi nasceu em 1895 na Rússia czarista, onde hoje é a Ucrânia. Durante seus estudos, se tornou ativo no Tze’irei Zion, movimento juvenil socialista-sionista. Ele se mudou para a Palestina em 1914, determinado a ser um dos primeiros colonizadores de uma terra que pertencia ao povo palestino. Em 1918 foi voluntário na Legião Judaica do Exército Britânico e em 1920 foi um dos fundadores do Kibbutz Degania Beit.
Ele ajudou a construir e foi membro do alto comando do Haganá, organização paramilitar sionista que ajudou a limpar étnicamente a Palestina e cometeu diversos crimes de guerra entre 1947-1949; também foi base para a constituição das Forças de Defesa de Israel. De acordo com Illan Pappé, o Haganá se converteu no braço militar da Agência Judaica, “o órgão de governo na Palestina que afinal desenvolveu e implementou os planos para a tomada sionista da Palestina como um todo e a limpeza étnica de sua população nativa”. Entre 1949 e 1967 Eshkol serviu como chefe da divisão de assentamentos da Agência Judaica.
De acordo com o Hareetz – que examinou documentos israelenses divulgados em 2017 -, meses após o fim da guerra dos Seis Dias, o então primeiro-ministro Levi Eshkol, membro do partido trabalhista, “de esquerda”, discutiu as formas de expulsar os árabes do território palestino. Uma de suas “soluções” era “encorajar a emigração árabe”, afirmando que deviam lidar com a questão “de uma forma calma e dissimulada, e trabalhar para encontrar a melhor forma de emigrar para outros países e não apenas para além do rio Jordão”. De acordo com a reportagem, Levi Eshkol expressou a esperança de que “precisamente devido à asfixia e à prisão lá, talvez os árabes se desloquem da Faixa de Gaza”.
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“Talvez se não lhes dermos água suficiente eles não tenham escolha, porque os pomares vão amarelar e murchar”, disse Eshkol. Ele resumiu que estavam interessados em “esvaziar Gaza”. Outra “solução” para isso, para ele, seria outra guerra. “Talvez possamos esperar outra guerra e então este problema será resolvido. Mas isso é um tipo de ‘luxo’, uma solução inesperada”.
Em uma reunião interna com Ada Sereni, chamada para “promover a emigração” dos refugiados palestinos, Meir Amit, chefe do Mossad, e Yousef Hermelin, chefe do Shabak, Eshkol afirmou que queria a expulsão de todos os palestinos, “Quero todos eles fora, mesmo que vão para a lua”, disse.
Ele, na verdade, nunca reconheceu o papel do sionismo e de Israel na Nakba palestina, ou não se importou. Em certa ocasião, quando o governo discutia soluções para os refugiados palestinos, expulsos de suas terras pelos colonizadores israelenses, ele insistiu que não era problema deles. “Afinal, não entramos aqui como um movimento clandestino”, disse Eshkol. “Nós declaramos que a Palestina era nossa por direito”. O Ministro da Saúde Barzilai se opôs: “Mas eles são residentes da Palestina”. O primeiro-ministro manteve sua posição: “Todos os judeus do mundo são residentes de Israel que foram desenraizados e expulsos, e depois encontraram uma salvação em outros lugares”.
O talento de sua filha, Noa, e a qualidade de sua obra são indiscutíveis, mas ela representa o sionismo; seu sobrenome remete a crimes cometidos pelo Estado Israelense, sob a liderança de seu pai. Sua obra pode não aborda questões políticas, mas escolher o silêncio e criar uma arte “desvinculada de processos intelectuais” diante de tantos crimes contra a humanidade é escolher um lado, aproveitar seus privilégios como colonizadora, ignorando o sofrimento palestino e as diversas violações dos direitos humanos cometidas ao seu redor e ordenadas por seu próprio pai. Poderiam exibir seu trabalho se ao menos também dessem visibilidade para artistas palestinos que exponham o sistema de apartheid e essa cruel colonização.
No texto “Bienais sem fronteiras”, a pesquisadora chinesa Chin-Tao Wu mapeou a nacionalidade dos artistas participantes de bienais, comparando com os discursos institucionais.“As bienais, mecanismo institucional mais popular nas últimas décadas para a organização de exposições de arte de larga escala, revelam, apesar das alegações democráticas e anticolonialistas, ainda incorporar as estruturas tradicionais de poder do mundo da arte contemporânea ocidental; a única diferença é que a palavra ‘ocidental’ foi silenciosamente trocada por uma mais popular, a palavra ‘global’.”, afirma.
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No primeiro texto do catálogo da 34ª Bienal, uma correspondência de 19 de agosto de 2021, Elvira Dyangani Ose, editora convidada, escreve:
“Para a nossa geração: aqueles de nós que vivem em cidades do Ocidente, onde guerras ou conflitos ocorrem em uma terra distante. Nós que vivemos no Sul Global, onde os políticos parecem responder a uma dimensão paralela, enquanto as comunidades a que juravam servir já não têm medo de sair às ruas para reivindicar seus direitos nesta dimensão vivida de forma tão intensa. Protestos em Hong Kong que duraram um ano, o estallido social no Chile e marchas contra as expropriações em Sheikh Jarrah, na Jerusalém Ocupada, são apenas três casos em questão. Aqueles de nós que despertaram contra os regimes distópicos, (…). Aqueles de nós que lutam pela desmilitarização das fronteiras e pela restauração da condição humana para todos os seres humanos.”
De fato, a 34ª Bienal melhorou muito se comparada com as anteriores, mas falha em não abordar os povos colonizados em pleno 2021 para além do discurso.
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