Porto Alegre sediará, de 26 a 30 de janeiro de 2022, o primeiro Fórum Social Mundial Justiça e Democracia, um evento que pretende ser “um movimento de resistência, de denúncia, de criação e de luta para a transformação do sistema de justiça assim como de consolidação de instituições nele envolvidas e comprometidas com os valores da democracia, da dignidade e da justiça social”. O evento está sendo organizado por associações e coletivos jurídicos, movimentos sociais e entidades progressistas das áreas da Justiça e da Democracia. Entre elas estão: Transforma MP, Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABDJ), Associação de Advogadas e Advogados Públicos pela Democracia, Associação Juízes para a Democracia (AJD), Coletivo Defensoras e Defensores Públicos pela Democracia e Movimento Policiais Antifascismo.
O encontro pretende fazer uma reflexão sobre os diversos problemas que envolvem o sistema de justiça hoje e suas conexões com as ameaças que pairam sobre a democracia no Brasil e em vários outros países. As atividades do FSMJD 2022 serão organizadas em torno de cinco grandes eixos:
Democracia, Arquitetura do Sistema de Justiça e as forças sociais;
Sistema de Justiça, Democracia e Direitos de grupos vulnerabilizados;
Capitalismo, desigualdades, relações sociais, mundos do trabalho e sistemas democráticos de Justiça;
Democracia, Comunicação, tecnologias e Sistema de Justiça;
Perspectiva transformadora do Sistema de Justiça e a centralidade da cultura nesse processo.
A mesa de abertura do Fórum já tem as presenças confirmadas do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de Marinete da Silva, mãe de Marielle Franco, vereadora do PSOL assassinada no Rio de Janeiro no dia 14 de março de 2018, entre outros convidados e convidadas. O FSMJD também se insere entre as atividades preparatórias para o Fórum Social Mundial 2022, que será realizado no México no início do próximo ano. As redes sociais do fórum temático são: Youtube, Facebook, Instagram e Twitter.
O evento em Porto Alegre não se limitará a um espaço de debates e pretende ter também um caráter propositivo, explica a promotora Alessandra Queiroga, do Ministério Público do Distrito Federal e integrante do Coletivo Transforma MP. Em entrevista ao Sul21, Alessandra Queiroga fala sobre como nasceu a ideia de realizar um Fórum Social Mundial sobre Justiça e Democracia, aponta alguns dos principais problemas que afetam o sistema de justiça hoje e ameaçam a democracia.
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“Não é para ser apenas um encontro para troca de informação. Queremos fazer um grande encontro onde as pessoas que estão dentro do sistema de Justiça e as pessoas que são vítimas desse sistema possam se unir e constituir uma rede mais próxima, nos ajudando mutuamente e propondo mudanças para o sistema como um todo”, assinala a promotora.
Alessandra Queiroga: O Transforma MP, uma associação formada por membros do Ministério Público dos Estados, da União e do Ministério Público do Trabalho, chamou no ano passado uma reunião com outros coletivos jurídicos como Policiais Antifascismo, Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, Juízes pela Democracia e Coletivo Defensoras e Defensores Públicos pela Democracia para pensar ações conjuntas a serem tomadas durante a pandemia. Percebemos que estávamos fazendo notas de solidariedade, entrando como Amicus Curiae em ações judiciais e tomando outras iniciativas muito parecidas com as que essas outras associações estavam fazendo. Todos nós pertencemos a um campo mais progressista, mais ligado aos direitos sociais, aos direitos da Constituição de 1988. Nós decidimos então chamar esses coletivos para ver se articulávamos melhor nossas ações e convidamos o professor Boaventura Sousa Santos para dar uma palestra. Ele ouviu os nossos projetos e, ao final, propôs essa ideia de realizar um Fórum Social Mundial sobre Justiça e Democracia.
Naquele período, ainda não tinham ocorrido as decisões do Supremo Tribunal Federal sobre a suspeição de Sergio Moro e outros temas ligados à Operação Lava Jato. Nós achamos que era importante denunciar os desmandos da Lava Jato, fazendo uma espécie de Tribunal da Lava Jato. Começamos então a conversar sobre a organização do Fórum e outras entidades logo quiseram aderir à iniciativa e estamos nesta construção desde setembro do ano passado. O objetivo inicial era fazer o Fórum em setembro deste ano. Quando chegamos em janeiro deste ano, vimos a dificuldade que seria realizá-lo na data inicialmente prevista em função das dificuldades do calendário de vacinação. Ficamos alguns meses avaliando qual seria o melhor momento e melhor local para realizar o Fórum.
Alessandra Queiroga: Nós chegamos a conversar com algumas cidades do Nordeste, que tinham governos mais à esquerda, mas fizemos algumas ponderações e decidimos escolher Porto Alegre, que tem um histórico de mobilização de movimentos sociais e é a cidade onde nasceu o Fórum Social Mundial. Além disso, talvez inclusive por ter um governo mais à direita, avaliamos que em Porto Alegre sofreríamos menos influência da questão eleitoral e de eventuais disputas em cidades que têm governos mais à esquerda. Procuramos ter o maior cuidado nesta questão. Vários de nós, eu inclusive, estamos na ativa e temos uma vedação de fazer atividade político-partidária. Como 2022 é ano de eleição e as coisas tendem a se acirrar durante esse período, achamos que, para nós que estamos na ativa, juízes, promotores e procuradores, o quanto antes realizássemos o evento seria melhor para que ele não se confundisse com a campanha eleitoral. O que queremos fazer é uma reflexão sobre o sistema de justiça e seus vários problemas.
Alessandra Queiroga: A Justiça se deixou instrumentalizar muito nos últimos anos. Esse ativismo judicial, que em determinado momento foi necessário inclusive para poder conter excesso de outros poderes, acabou tendo um protagonismo que é perigoso para a democracia porque ele desmobiliza a sociedade em relação às demandas que precisam passar pelo Legislativo.
Estamos agora numa fase de franca negociação financeira dentro do Congresso Nacional, onde leis estão sendo alteradas com uma rapidez muito grande e manobras regimentais foram feitas diminuindo a capacidade de resistência da oposição. Há um verdadeiro trator passando dentro do Congresso aprovando medidas neoliberalizantes de diminuição do Estado, privatizações, reformas que prejudicam o funcionalismo público. Tudo isso acaba tendo que ser contido, na medida do possível, via Judiciário. Existe um posicionamento do professor Boaventura de Sousa Santos, com o qual concordo bastante, defendendo que os movimentos sociais têm que começar a ser atores e acionarem o Poder Judiciário, não ficando sempre na qualidade de réus. Os movimentos sociais precisam reinventar seu protagonismo para fazer demandas judiciais por moradia, direito à alimentação e tantos outros direitos que vêm sendo violados. O Judiciário precisa estar preparado para receber essas demandas.
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Acredito também que o ensino jurídico precisa ser modificado, tanto nas faculdades como no que é cobrado nos concursos, com um enfoque maior em direitos humanos e justiça restaurativa, saindo desse punitivismo estatal e da concepção de que o que é preciso fazer é maior encarceramento e construir mais presídios. Isso vai acabar culminando na situação que vemos hoje nos Estados Unidos com privatização de presídios e encarceramento em massa dos considerados “indesejáveis”. Esses presídios acabam se tornando depósitos humanos e uma afronta ao Estado de Direito. O Judiciário, o Ministério Público e suas instituições precisam se olhar e ver o que estão fazendo para contribuir para esse processo de segregação das pessoas.
Também precisamos enegrecer, empretecer esses sistemas, ter mais cotas, fazendo com que as pessoas negras estejam também em posição de comando dentro das nossas instituições, trazendo o olhar do lugar de onde elas vêm para ouvir e tratar com mais humanidade as pessoas que são vítimas do sistema de justiça. Além disso, necessitamos de uma grande discussão e de uma reforma no processo de formação e escolha dos próprios quadros do Judiciário. Acho muito boa a ideia do professor Alysson Mascaro de que todo juiz e promotor, antes de assumir esses cargos, deveriam passar obrigatoriamente um tempo na Defensoria Pública, atendendo às pessoas que precisam, vendo os dramas do dia-a-dia. Talvez devêssemos mexer também nas idades mínimas para que as pessoas ingressem nas instituições, para que entrem com mais maturidade e menos protagonismo, com a consciência de que não somos heróis, mas trabalhadores, servidores públicos.
Precisamos ainda de uma formação que nos dê uma visão sobre as consequências econômicas de nossas ações para que a gente não seja tão estrito no sentido de não fazer nenhum tipo de avaliação sobre as consequências das nossas decisões para, por exemplo, uma empresa pública grande e para a sanidade econômica do país como um todo. Podemos fazer uma ação extremamente legítima para apurar delitos cometidos por dirigentes de uma empresa, mas não é preciso sufocar economicamente aquela empresa. Há toda uma reestruturação de raciocínio que precisa ser feita.
Alessandra Queiroga: Acredito que uma das coisas que mais ameaça a democracia hoje é a utilização das redes sociais e, em especial, dos aplicativos de envio de mensagens como Whatsapp e Telegram em processos eleitorais. Como é que esses mecanismos serão utilizados nas próximas eleições? Eles foram fundamentais para a ascensão da extrema-direita no Brasil. Não é só uma questão de saber utilizar essa estrutura tecnológica. É muito dinheiro que está sendo usado aí para fomentar grupos e não só espalhar fake news, mas também criar determinadas situações. É um mecanismo novo, um encontro entre o mundo digital e o neoliberalismo que está construindo um imaginário popular que vende com muita facilidade as ideias da competição entre nós, do empreendedor de si mesmo, da destruição de tudo o que é estatal. Isso nós vivendo uma época, como a que passamos agora com a pandemia. Imagina se nós não tivéssemos o SUS no Brasil.
Há um domínio ideológico muito forte, que se propaga principalmente entre as pessoas mais jovens e que está nos colocando em um caminho muito difícil, do cada um por si, do não estou nem aí que morra 30% da população da fome e que inclusive isso seria melhor para o país e para o mundo. Essas são as questões que mais nos assustam hoje e que pretendemos tratar no Fórum Social Mundial Justiça e Democracia.
Alessandra Queiroga: A nossa ideia é que o Fórum tenha um caráter propositivo e não se resuma a debater esses temas. Ao final, queremos criar grupos de trabalho, comissões temáticas, propor redação de projetos de lei, acompanhamento de cumprimento de metas. Não é para ser apenas um encontro para troca de informação. Queremos fazer um grande encontro onde as pessoas que estão dentro do sistema de Justiça e as pessoas que são vítimas desse sistema possam se unir e constituir uma rede mais próxima, nos ajudando mutuamente e propondo mudanças para o sistema como um todo.
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