Em nossa luta contra o apartheid, muitos judeus nos apoiaram, quase instintivamente ao lado dos marginalizados; daqueles sem voz; daqueles que lutam contra a injustiça, a opressão e o mal. Sempre estive ao lado das comunidades judaicas. Sou patrono do centro de memória do Holocausto na África do Sul e compreendo o direito à segurança da população israelense.
O que não entendo, o que não se justifica é o que foi feito a um outro povo para garantir a existência de Israel. Minha visita à Terra Santa me deixou consternado; lembrou-me bastante do que aconteceu com os negros sul-africanos. Testemunhei a humilhação dos palestinos nos postos de controle e nos bloqueios das estradas, um sofrimento análogo àquele que jovens policiais brancos nos impuseram para restringir nossa liberdade de movimento.
Em uma das minhas visitas à Terra Santa, dirigi a uma igreja junto do bispo anglicano de Jerusalém. Percebi a tristeza em sua voz ao me mostrar os assentamentos exclusivamente judaicos. Pensei até mesmo no anseio israelense por segurança. Mas o que falar dos palestinos que perderam seus lares e suas terras?
Os palestinos me mostravam onde ficavam suas casas — agora ocupadas por colonos de Israel. Caminhei acompanhado de Canon Naim Ateek — chefe do Centro Ecumênico Sabeel, em Jerusalém. Ele apontou e disse: “Nossa casa ficava logo ali; fomos expulsos e agora é ocupada por judeus israelenses”.
Meu coração sofre. Por que nossas memórias são tão curtas? Nossos irmãos e irmãs judeus se esqueceram da humilhação? Esqueceram o castigo coletivo e a demolição de casas que vivenciaram há pouquíssimas décadas? Viraram suas costas às suas nobres e profundas tradições religiosas? Esqueceram que Deus se importa profundamente com os oprimidos?
Israel jamais terá segurança e estabilidade enquanto oprimir outro povo. Uma paz verdadeira só pode ser construída por meio da justiça. Condenamos a violência dos ataques suicidas e condenamos o ódio que corrompe a mente dos jovens. Também condenamos, porém, a violência das incursões militares nas terras ocupadas e as restrições desumanas que proíbem as ambulâncias de chegar aos feridos.
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Ações militares — prevejo com convicção — jamais trarão a segurança e a paz que os israelenses tanto querem; somente agravarão o ódio e o ressentimento.
Israel tem três alternativas: retornar ao velho impasse; exterminar todos os palestinos; ou — tenho esperanças — colaborar com uma paz justa, após sua retirada de todos os territórios ocupados e o estabelecimento de um estado palestino viável com fronteiras seguras.
Nós, na África do Sul, tivemos uma transição relativamente pacífica. Se nossa loucura se encerrou dessa maneira, é possível fazer o mesmo no restante do mundo. Se pode haver paz na África do Sul, certamente podemos conquistá-la também na Terra Santa.
Meu irmão Naim Ateek repetiu o que costumávamos dizer: “Não sou a favor deste ou daquele povo. Sou a favor da justiça e da liberdade. Sou contra a injustiça e a opressão”.
Vocês sabem tão bem quanto eu que o governo israelense é colocado em um pedestal pelos Estados Unidos, de modo que criticá-lo implica quase imediatamente em acusações de antissemitismo — como se o próprio povo palestino também não fosse semita. Eu mesmo não sou contra os brancos, apesar da insanidade que prevalece nas massas. Mas como Israel escolheu cooperar com nosso regime de apartheid em termos de segurança?
As pessoas têm medo de denunciar o que é errado por causa do poderosíssimo lobby sionista. O que fazer então? Pelo amor de Deus, este é o mundo Dele! Vivemos em um universo moral. O regime de apartheid também concentrava poder; hoje, não existe mais. Hitler, Mussolini, Stalin, Pinochet, Milosevic e Idi Amin eram bastante poderosos; no fim, todos caíram por terra.
A injustiça e a opressão jamais prevalecerão. Os poderosos têm de se lembrar da prova de fogo de Deus: como tratam os pobres, os famintos, aqueles sem voz? Deus deverá julgá-los.
Devemos fazer um chamado claro aos governantes do povo de Israel, assim como aos palestinos, e reafirmar a todos: a paz é possível, a paz fundamentada na justiça é realmente possível. Faremos tudo que pudermos para ajudá-los a conquistar a paz — pois se trata do sonho de Deus — e todos poderemos viver juntos como irmãos e irmãs.
Desmond Tutu foi arcebispo da Cidade do Cabo e presidente da Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul. Seu discurso foi proferido na Conferência pelo Fim da Ocupação realizada em Boston, Massachusetts, em abril de 2002; então publicado pelo The Guardian naquele mesmo mês.
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