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A morte de Rayan Oram nos devolveu à vida

Multidão assiste operação de resgate de um menino de cinco anos que caiu em um poço na aldeia remota de Ighrane, na província rural de Chefchaouen, norte do Marrocos, em 5 de fevereiro de 2022 [FADEL SENNA/AFP via Getty Images]

Somente alguns minutos se passaram entre as notícias do resgate de Rayan Oram, de dentro de um poço escuro no norte do Marrocos, e a confirmação de sua morte — um breve momento de de tempo, mas extremamente denso e pleno de significado.

Por cinco dias consecutivos, junto de milhões de outras pessoas, acompanhei minuto a minuto as tentativas de resgatar o menino de cinco anos de idade, que lutava por sua vida, sem comida e sem água. Sua mãe não podia segurá-lo no colo e confortá-lo. Por cinco dias, olhei para meus próprios filhos com ansiedade, enquanto imaginava o que sentiam os pais de Rayan.

Sua morte, no entanto, nos devolveu à vida. Sua queda naquele poço distante nos ensinou uma lição e nos uniu dia e noite em orações. Todos nós nos agarramos a uma centelha de esperança de que fosse resgatado em segurança, de que sua mãe pudesse consolar seu choro novamente. Sonhamos juntos, em idiomas distintos, em crenças e culturas das mais diversas, à medida que o drama de Rayan nos unia em esperança, embora ainda debilitada.

Todos nós já ouvimos dizer, vez ou outra na vida, que há luz no fim do túnel e que a noite é mais escura antes do amanhecer. Mas como se sentiu este menino de cinco anos envolto nas trevas por cinco dias seguidos? Quantas vezes gritou e esperou uma resposta? Quantas vezes chamou por sua mãe em vão? São perguntas angustiantes. Nossos corações choram por Rayan, mas não podíamos ajudá-lo. Agora, tudo que dissermos ou escrevermos será insuficiente.

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O povo árabe também caiu no proverbial poço da tirania e da brutalidade, asfixiado por seus reis e presidentes. Os opressores não se importam com a dor de seus cidadãos, a menos que haja uma oportunidade cínica de fotografar-se ao lado das vítimas.

No Marrocos, Rayan Oram faleceu pouco após ser resgatado. Sofreu e resistiu, agarrou-se à vida com todas as forças, na esperança de desfrutar novamente do ar fresco e da liberdade. Todavia, seu sonho acabou e a história chegou a um final bastante trágico. Sua saga parece refletir o que ocorreu com toda uma geração árabe, uma década atrás.

Desabamos no poço profundo de ditaduras corruptas, então nos rebelamos e agarramos nossos sonhos com ambas as mãos. Insistimos que havia luz no fim do túnel; nos unimos, como Rayan nos uniu em seu sofrimento, e vislumbramos uma sensação de vitória ao longo das revoluções populares da Primavera Árabe. Entretanto, mais outra vez, quando começamos a sentir os ares da justiça e liberdade, o sonho acabou e a vida subitamente virou do avesso.

Rayan é uma história recorrente: lembram-se de Aylan, menino sírio de três anos que afogou-se no Mediterrâneo, cujo corpo apareceu em uma praia da Turquia, em 2015? E do menino egípcio que gritava a plenos pulmões “acorde, mamãe”, após o exército assassiná-la durante o massacre de Rabba al-Adawiya, na cidade do Cairo? A jornada de Rayan traz ainda à mente as imagens do menino palestino Muhammad al-Durrah, de 12 anos de idade, morto por disparos da ocupação israelense nos braços de seu pai. Ou as vítimas das bombas emiradenses disparadas contra uma escola no Iêmen? Recordemos também as milhares de crianças sírias perecendo nos campos de refugiados, em condições precárias, ou afogadas nas águas congelantes do Canal da Mancha, ao tentar alcançar seu salvo-conduto. Todas eram crianças inocentes, vítimas da desigualdade e da injustiça que assola este mundo.

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Assassinatos, afogamentos, incêndios, violações de direitos, abandono, serviços precários, sequestro, assédio e estupro são todos crimes cometidos contra as crianças neste mundo repleto de ódio e rancor. Nada muda com cada crime perpetrado, quase cotidianamente. Compartilhamos então notas de repúdio e hashtags nas redes sociais.

Acredito que Rayan está em um lugar muito melhor. Que descanse no Jardim Eterno.

Que Deus conceda consolo à sua mãe e ao seu pai.

Seu falecimento alcançou nossos corações e este trauma não será curado tão cedo. Não nos esqueceremos de Rayan, sua luta por cinco longos dias e noites, debaixo do frio. No entanto, ainda imaginamos se Rayan sobreviveria à opressão e à tirania que tomam os países árabes. Que possamos refletir com este incidente, para enfim destronar os ditadores e construir um mundo melhor para nossas crianças.

Este artigo foi publicado originalmente em árabe pela rede Arabi21, em 6 de fevereiro de 2022

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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