O Líbano é uma das cinco localidades, junto da Jordânia, Síria, Cisjordânia e Faixa de Gaza, onde a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA) fornece serviços de saúde, educação e socorro emergencial a campos de refugiados palestinos. Mesmo antes da chegada dos refugiados sírios, a situação no Líbano já refletia alguns dos maiores desafios às operações da UNRWA — incluindo as condições de vida dos palestinos na diáspora.
Em 2020, cerca de 470 mil refugiados palestinos radicados no Líbano foram registrados pela UNRWA — 45% residentes dos doze campos reconhecidos oficialmente, o restante em 150 comunidades espalhadas por todo o país. Embora a agência das Nações Unidas admita a presença dos refugiados fora dos campos, as áreas onde residem não são devidamente reconhecidas, conforme um acordo firmado com o estado libanês. Escolas, escritórios e centros de saúde da UNRWA são, portanto, exclusividade dos campos superpovoados.
Historicamente, o governo libanês deixou claro que os refugiados palestinos não têm qualquer direito de assentar-se permanentemente no país.
Reiterou a UNRWA: “Os palestinos no país não desfrutam de diversos direitos cruciais; por exemplo, são proibidos de exercer 39 profissões e não podem adquirir bens imobiliários. Por não possuírem cidadania formal de algum outro país, os refugiados palestinos tampouco podem usufruir dos mesmos direitos conferidos a outros estrangeiros que vivem e trabalham no Líbano”.
Neste contexto, a UNRWA se tornou um bote salva-vidas aos refugiados palestinos.
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Contudo, a própria UNRWA está sob ataque e sem recursos suficientes, em meio a disputas políticas sobre a designação dos refugiados e quantos palestinos na diáspora podem ser considerados como tal. Alguns argumentam que o fim das doações dos Estados Unidos à UNRWA, sob decisão do ex-presidente Donald Trump, e a redução dramática das remessas dos Emirados Árabes Unidos — após os Acordos de Abraão, isto é a normalização com Israel — é parte do estratagema israelense para fazer com que a pauta dos refugiados desapareça. Lamentavelmente, o preço é pago pelos próprios refugiados, privados de uma vida digna e de direitos humanos fundamentais.
Décadas de sofrimento
Por décadas, as dificuldades enfrentadas pelos refugiados palestinos no Líbano se acumularam. Em geral, todos os campos sofrem de superlotação, desemprego, habitações precárias, infraestrutura inadequada e falta de acesso à justiça. As restrições libanesas impostas aos refugiados sobre seus direitos econômicos e sociais impossibilitaram qualquer melhoria em sua situação ou sequer sua participação na vida pública, mesmo antes do colapso atual.
Após os Acordos de Oslo, assinados entre Israel e a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), em 1993, a recém-criada Autoridade Palestina (PA) passou a concentrar-se nas necessidades dos residentes da Faixa de Gaza e da Cisjordânia. A nova conjuntura levou a uma queda transversal na prestação de serviços aos refugiados. Os hospitais da Sociedade do Crescente Vermelho da Palestina (SCVP), por exemplo, foram severamente afetados, sem recursos para remunerar médicos e enfermeiros ou reabastecer seus equipamentos. A fundação depende de ongs internacionais para prestar serviços, mas as remessas não suprem a demanda. Devido a sua própria crise financeira, a UNRWA tampouco cobre as necessidades.
Campos superpovoados
Ongs, grupos políticos e comitês populares confirmam o índice de aproximadamente 29 mil refugiados palestinos que deixaram a Síria e habitam agora os campos existentes.
A chegada de novos refugiados aos campos superpovoados representa uma enorme preocupação em termos de saúde e qualidade de vida. O campo de Ein el-Hilweh, no sul do Líbano, por exemplo, é uma área de apenas 1.7 km² com mais de cem mil habitantes, dos quais 80% são refugiados palestinos de 1948 — quando foi criado o Estado de Israel, via limpeza étnica planejada, episódio conhecido como Nakba ou catástrofe. O restante são sírios e palestinos que fugiram da guerra civil no país vizinho, no decorrer da última década. Como resultado, não há espaço suficiente para que as crianças desfrutem de sua infância ou para que as famílias tenham privacidade ou lazer.
Segundo um estudo de campo da UNRWA — realizado com recursos do Japão, em meados de 2015 — um terço dos refugiados palestinos sofrem de doenças crônicas, como diabetes, hipertensão, asma e outras doenças respiratórias. Além disso, a taxa de desemprego entre as comunidades chegou a 56% e os índices de pobreza alcançaram 71% das famílias palestinas. Desde então, não obstante, a situação degringolou ainda mais.
É comum que mais de uma família viva na mesma casa, o que efetivamente agravou o impacto do covid-19 na região, além de outros problemas econômicos e sociais. Não há qualquer possibilidade de expandir seus lares. Em 1997, a compra de materiais de construção foi proibida em cinco campos de refugiados no sul do Líbano — Rashidieh, Burj Shemali, El Buss, Ein El Hilweh e Mieh Mieh —, salvo sob autorização expressa das Forças Armadas. Desde então, toda e qualquer tentativa de levar sequer um saco de cimento a tais campos resulta em encarceramento sob acusações de contrabando, além de multas onerosas às famílias.
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Mesmo que haja meios de viver fora dos campos, o parlamento libanês não hesitou em aprovar a Lei n° 296, segundo a qual os refugiados palestinos são proibidos de adquirir bens imobiliários. A atual legislação também priva os refugiados do direito à herança, exceto propriedades registradas em seu nome antes de 2001.
A chegada dos refugiados sírios e a escalada da crise
Os refugiados sírios são registrados nos arquivos libaneses junto ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), enquanto os palestinos deslocados da Síria possuem registro somente na UNRWA. Contudo, refugiados palestinos anteriores à guerra civil no país levantino e os recém-chegados dependem igualmente dos serviços da agência.
Conforme um relatório recente da UNRWA — intitulado “Palestine Refugees in Lebanon: Struggle to Survive”; ou “Os refugiados palestinos no Líbano: Luta para sobreviver”, em tradução livre —, cerca de 73% dos refugiados palestinos vivem abaixo da linha da pobreza e 58% das famílias tiveram de reduzir a quantidade e a frequência de suas refeições. Além disso, 87.3% dos refugiados palestinos que deixaram a Síria em direção ao território libanês prontamente despencaram à situação de “pobreza absoluta” e 11.3% passaram a viver em situação de “pobreza abjeta”, segundo dados de 2020.
Atualmente, a taxa de desemprego entre os refugiados palestinos gira em torno de 90% nas comunidades no Líbano, de acordo com estimativas compiladas por entidades civis que colaboram com grupos e comitês políticos e populares, em âmbito local.
Apesar das promessas do Ministro do Trabalho Moustafa Bayram de melhorar as condições de emprego aos refugiados palestinos, é imprescindível o aval do parlamento para executar esforços neste sentido. As sugestões de Bayram foram repudiadas por seu antecessor, Sejam Kazzi, assim como pelo ex-chanceler Gebran Bassil, que consideram programas sociais como uma forma de permitir o assentamento permanente dos palestinos no Líbano.
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Aumento na depressão
Entre o sofrimento contínuo das comunidades na diáspora, sem qualquer luz no fim do túnel, casos de depressão e outras doenças mentais aumentam exponencialmente, assim como pedidos de divórcio e atos de violência. À medida que se esgotam as alternativas para complementar a renda ou cortar os gastos cotidianos, casos de trabalho infantil, evasão escolar e matrimônio precoce são cada vez mais comuns. As famílias recorrem então a esforços desesperados para deixar o país, principalmente com destino à Europa. Os refugiados vendem o pouco que têm para pagar redes de tráfico humano, cientes de que a maioria das tentativas terminam em tragédia. As famílias buscam apenas segurança, estabilidade e uma vida melhor.
Devido às dificuldades que se acumulam, houve um aumento nos índices de depressão crônica, sobretudo entre os jovens, sem motivação ou meios para prosseguir com os estudos e sem esperanças de conseguir um emprego digno devido às restrições. Nesta conjuntura, prevalecem receios de que a população mais jovem seja cooptada por gangues ou facções extremistas dentro e fora dos campos — uma ameaça adicional à frágil estabilidade do Líbano.
Viver com dignidade tornou-se um sonho
Os refugiados palestinos no Líbano são unânimes na noção de que a comunidade internacional os abandonou há mais de sete décadas. É seu direito viver com dignidade humana até que possam retornar a seu país. Este direito é um sonho que os acomete dia e noite. No entanto, não há indícios de que este sonho poderá se materializar no futuro próximo.
Ali Hweidi é escritor, pesquisador e refugiado palestino radicado em Beirute, capital do Líbano
Publicado originalmente em Washington Report
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