Escondida em uma das ruas mais movimentadas de São Paulo, uma discreta vilinha revela a forte presença árabe na cidade. A pequena passagem transporta a uma relativa calmaria, jovens conversam em árabe e fumam narguilé na rua vazia, onde autênticas tabacarias e restaurantes sírios se escondem. Decorada com tecidos e grafites de grandes personalidades mundiais, a vilinha entre a rua 25 de Março e a Barão de Duprat mostra porque ainda podemos chamar a região de “A pequena Bagdá”.
“A ideia é que aqui a gente consiga ter um sentimento e despertar os sentidos para a presença árabe”, conta o guia turístico e historiador Marcos Marsulo durante o tour histórico “A pequena Bagdá: os árabes na região da 25 de março”, que aconteceu no sábado, 12, e será repetido no dia 19 de março.
Enquanto centenas de pessoas andavam freneticamente com sacolas de compras nas mãos e vendedores gritavam simultaneamente produtos diversos, o guia reunia trinta pessoas a sua volta e as transportava para a virada do século e as primeiras décadas do século XX, quando o rio Tamanduateí ainda exibia suas curvas e os imigrantes árabes chegavam à região junto com a modernização, trazendo com seu sangue fenício todo o potencial comercial.
O nome oficial da rua foi dado em homenagem à primeira Constituição do Brasil, outorgada pelo Imperador Dom Pedro I em 25 de março de 1824. A data também celebra a Anunciação de Nossa Senhora. No final do século XIX, sírios e libaneses, que desembarcavam no Brasil, se fixaram na região, desenvolvendo o que se tornou o maior centro de comércio do país. Em 2008, a Câmara dos Deputados aprovou a instituição de 25 de março como o Dia Nacional da Comunidade Árabe, em homenagem à colaboração dessa comunidade ao crescimento do país.
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“Nessa esquina aqui, tinha um comércio árabe da família Saad, de sírios. Lá pelos anos 30, o filho do senhor Saad era caixeiro viajante, não era mascate”, conta Marcos, na esquina da 25 com a ladeira Porto Geral. “O mascate é aquele camarada que colocava tudo dentro duma mala, colocava nas costas e saía estrada fora batendo de porta em porta, vendendo na hora. Os árabes encontraram esse terreno fértil, porque não tinha um sistema de entregas, não tinham lojas no interior. Os árabes que traziam isso no sangue, levavam as mercadorias mais necessárias em malas que chegavam a pesar até oitenta quilos e ficavam até trinta dias fora, esse é o mascate”, diferencia ele. “O caixeiro viajante é o tirador de pedidos, o mercado livre, ele vai lá e pergunta o que precisa e então viaja para São Paulo, compra a mercadoria e leva para o interior”.
“Esse bom caixeiro viajante acabou se casando com a filha do Ademar de Barros, governador de São Paulo e dono da Rádio Bandeirantes. Esse camarada era o João Jorge Saad”, conta Marcos, iniciando a história do fundador do Grupo Bandeirantes de Comunicação, enquanto aponta para os cantos que um dia foram o núcleo têxtil da 25 de março.
Durante a visita, na Praça Ragueb Chohfi, o grupo passa pelo Monumento da Amizade Sírio-Libanesa, feito pelo escultor italiano Ettore Ximenez (mesmo artista responsável pelo Monumento à Independência, no Ipiranga), e oferecido pela comunidade sírio-libanesa em celebração aos cem anos da independência do Brasil, em 1922.
“O Ettore Ximenez era um escultor italiano muito contratado e procurado pelas novas nações, que estavam nascendo independentes da Europa, para a construção de monumentos daquela nacionalidade nascente”, conta o guia. “Os sírios-libaneses não foram diferentes, porque, até então, chamavam os árabes de turcos”, explica ele, contando brevemente a história do Império Otomano e o nacionalismo árabe.
Escondido entre as árvores, o monumento já foi alvo de muito vandalismo; além das pichações, faltam cabeças, braços e várias partes do que um dia foi uma obra rica em detalhes e hoje já devem ter sido derretidas e vendidas. Representa com simbolismos os fenícios, o ensino do alfabeto e a entrada dos árabes no Brasil. No momento da visita, a praça estava sendo limpa pela prefeitura de São Paulo, e segundo Marcos, o local era feito de banheiro pelas pessoas em situação de rua e usuários de drogas e ele várias vezes entrou em contato com a Subprefeitura pedindo pela manutenção.
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“A ideia é fazer com que as pessoas conheçam esses lugares e comecem a se ver apropriar do espaço urbano da cidade para que, à medida que as pessoas ocupem o espaço novamente através da visitação, elas falem para outras que falem para outras… Até chegar uma hora que o poder público vai ficar sabendo e vai procurar tomar mais cuidado e tentar resolver essa questão social gravíssima, porque nós precisamos acudir a esse pessoal em situação de rua e precisa a Justiça precisa resolver o problema do tráfico. Nós não podemos ficar refém, como estamos, na cidade, em que os estranhos na cidade somos nós. Mas isso só vai acontecer quando os moradores se apropriarem do espaço da cidade que abandonamos”.
O tour pela região da 25 é um dos roteiros oferecidos pela VISIT SP – tour histórico, empresa fundada por Marcos e sua esposa, a historiadora Silmara Feres. A agência de turismo cultural histórico oferece diversos roteiros para conhecer a fundo a história de São Paulo, e conta com participantes frequentes de várias idades, que não cansam de aprender com histórias narradas por Marcos. São oferecidos roteiros a pé pelos bairros de São Paulo, pelo centro histórico e também viagens curtas pelo Estado. Segundo Marcos, já foram cerca de 95 roteiros realizados.
“Os roteiros, na verdade, funcionam como um grande mosaico, um grande quebra-cabeça”. Segundo o historiador, aqueles que aderem aos passeios, conseguem vivenciar toda a história da cidade em um média de dois anos.
“O que me motiva, nesses roteiros, é justamente dar a oportunidade para as pessoas conhecerem a sua cidade”, conta Marcos. “E quando a gente trabalha os roteiros, não trabalhamos apenas pelo honorário do passeio, a gente também é formador de opinião. Também tem o trabalho como educador”.
Marcos trabalhou na área de arte-educação do Itaú Cultural por oito anos, antes já havia aprendido sobre a mediação em uma experiência no Museu de Arqueologia e Etnologia USP. Mas sua carreira como guia turístico surgiu ao acaso, quando havia sido contratado para acompanhar as filmagens de um documentário no Museu do Ipiranga, em 1998. Enquanto ele filmava, com a sala lotada, uma criança apontou para o quadro da independência e perguntou ao pai o que era, “e o pai, na sua simplicidade, explicou do jeito dele”. “Eu, como historiador formado e com experiência de educador, não posso ser conivente com informações que não condizem, porque na história tem um ditado: quanto mais você repete uma mentira, ela vira uma verdade. Por isso que a gente padece de tantos problemas no país, por falta da gente conhecer nossa história, então eu pedi licença ao pai e comecei a explicar”, conta ele. “Eu expliquei e quando terminei devia ter umas sessenta, setenta pessoas em volta de mim, então alguém bateu nas minhas costas e pediu que eu acompanhasse o grupo”. Ele explicou que não era guia, mesmo com a insistência do grupo. “Não sei como, mas uns dois meses depois, alguém achou meu telefone e entrou em contato, pedindo que eu acompanhasse um grupo em uma visita à antiga Hospedaria dos Imigrantes no Brás”. O grupo que entrou em contato era a União Cívica Feminina, e assim começou sua trajetória com turismo. “Eram trabalhos bem esporádicos, porque eu não fazia divulgação”, que cresceu de “boca em boca”, “pela qualidade do trabalho”.
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“A cidade foi crescendo de tal forma, que ela se constrói e se destrói ao mesmo tempo, e nós não percebemos. Então, o que me motiva, é educar as pessoas – no bom sentido – para que elas conheçam o espaço geográfico que vivem, trabalham, estudam e moram. Para que essa pessoa passe a valorizar aquele espaço e possa ter uma consciência crítica para quando quiser reivindicar algo”.
O interesse na região da 25 de março surgiu logo quando criança, seu pai trabalhou no Mercadão e costumava levá-lo, contando os nomes das ruas e principais pontos do centro da cidade. “Meu pai tinha essa preocupação de ensinar para que a gente não se perdesse na cidade, e ele tinha uma memória excelente, então ele me contava os causos e isso, junto à prática dele de ler jornal, fez com que eu também pegasse o gosto para ler. Quando eu comecei a ler, como toda criança, eu queria saber o porquê de tudo e a História é um eterno responder aos porquês.”
“A partir da minha experiência familiar, quero poder levar as pessoas aos lugares que também me encantaram no passado, somando à minha prática universitária e educativa. Eu pensei: por que não procurar educar as pessoas para que reconheçam o lugar em que vivem? Isso é audacioso e a gente ousa sair do lugar comum”, conta ele.
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