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Soldados israelenses em Gaza ostentam má conduta

Motivos para ir e uma dura lição: Viagem à Palestina, agosto de 2019

Fauwzi Mustafa El-Mashni, Khader Othman, Ali Abur e Jamil Abdalla Fayad no apartamento base em Ramallah [Acervo pessoal]

Era um dia de semana como outro qualquer e eu estava como sempre na correria do trabalho. Entre um atendimento, no consultório, de uma criança e outra o telefone  tocou…  era meu pai.  Algo não usual, pois ele sabe que nesse horário estou na minha clínica atendendo, respondo ao chamado:

– Alô! Tudo bem, pai?

Do outro lado da linha:

– Sim. Tudo bem!

Instantaneamente ele emenda a seguinte pergunta:

– Vamos para a Palestina?

Não consigo responder… acho que balbucio alguma coisa incompreensível, não lembro exatamente o que.  Meu pai segue sua narração dizendo que o tio Khader  havia nos convidado para ficar no seu apartamento em Ramallah, além de se propor a nos ajudar com os contatos, deslocamentos e a tradução para árabe, em suma nos dando uma base de apoio para realizarmos um bom trabalho de campo com entrevistas, fotos, vídeos, debates, coleta de histórias.  De volta a nossa conversa telefônica, meu velho insistia de forma definitiva:

– Então… vamos para Palestina?

Perguntou, com a voz empolgada de quem já está decidido e se prepara para viagem.  Não consegui responder a indagação imediatamente, disse que retornaria assim que terminasse os atendimentos daquele  turno.  A verdade é que a minha cabeça não conseguiu processar  a proposta, pois estava focada em puericulturas e doenças. Mesmo continuando meus afazeres, a mente desenrolava as informações em paralelo ao exercício da minha profissão. Desta forma, a proposta se tornava minuto a minuto mais clara e sedutora, pois ir à Palestina sempre foi um sonho para mim e para o meu pai.  Isso tem a ver diretamente com o conceito que nos é muitíssimo caro: solidariedade com o povo palestino.

É preciso, meu amigo leitor, fazer uma digressão ou abrir um parênteses, como queira, sob pena de sermos mal compreendidos: Solidariedade, para nós, inclui uma capacidade de leitura do real. Assim, compreendemos que a dinâmica do sistema capitalista cria centros e periferias que se desenvolvem de forma desigual e combinada. Sabemos que essa dinâmica leva a periferia a se tornar fonte de matéria prima, energia, força de trabalho e consumo para as economias centrais. No caso específico da região, se sobressai a importância estratégica do petróleo – energia fundamental para os países centrais. A Palestina, por sua localização privilegiada, foi, historicamente, e é um ponto estratégico militar primoroso, para o controle de toda a região do Oriente próximo. Uma colônia altamente militarizada a serviço dessa lógica sistêmica, que favorece o centro, não é só desejada por esse como também mantida há mais de 70 anos com pesado auxílio. Os serviços prestados por essa colônia de substituição vão desde espionagem, assassinatos de lideranças regionais, guerras, invasões, criação de instabilidade nos países vizinhos, sabotagens, atentados,… a lista é grande e também bem paga.

Contudo a solidariedade não se encerra, nessa perspectiva de leitura de mundo. Ela inclui também a capacidade afetiva (de ser afetado) pela profunda injustiça que o povo palestino sofre. Sentir o que o outro sente é uma dimensão necessária da solidariedade, como se fosse uma permanente empatia que independe do campo da razão. Difícil de descrever essa sensação que nos transforma no outro, mas é assim que sentimos, como se fossemos nós mesmos palestinos.

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Todavia a solidariedade não é só o entender e o sentir, ela nos é fundamentalmente ação ou atividade, mais especificadamente, uma práxis, ou seja, uma ação que quer mudar a realidade. Por isso é, necessariamente, um ato político e como tal expressa sempre uma vontade (objetivo estratégico), no nosso caso, a libertação da Palestina do julgo colonial sionista. Só é práxis aquela atividade transformadora que é capaz de organizar, conscientizar, articular e mobilizar força social e política para seu objetivo, isto é, construtora ativa de contra-hegemonia e, como tal, está em permanente melhoramento de si mesma.

Fechado esse parêntese, voltamos ao nosso relato: A viagem para Palestina esteve nitidamente pautada por essa perceptiva solidária.

“Como podemos ajudar a nobre Causa Palestina melhorando a nossa práxis?” 

Esse foi o motivo central dessa viagem. Recuperar a seriedade e a gravidade que tal luta tem, bem expressada nas palavras do grande intelectual palestino Edward Said:

“(…) devemos ser conscientes de que a Palestina é uma das grandes causas morais de nossa época, e como tal devemos abordá-la. Não é um assunto para ser comercializado, regateado ou servir de trampolim para fazer carreira. É uma causa justa, que deve permitir aos palestinos reivindicar como sua razão moral e, como tal, preservá-la”.

Essas considerações são importantes, pois além de pautar nossa práxis (o que inclui a viagem), se constituem nas grandes dificuldades que enfrentamos na, Causa Palestina, no Brasil.

Por outro lado, pode parecer estranho que alguém que viaja a um lugar histórico riquíssimo como a Palestina, não o faça com nenhum desejo turístico. Pois bem, foi assim que viajamos! Conhecer e aprender com esse bravo povo,  que há mais de 70 anos luta por sua libertação e resiste bravamente ao colonizador estrangeiro, sempre habitou nosso desejo. Aprender suas diversas formas de resistência políticas (partidos, sindicatos, movimentos sociais, etc.), culturais (vestimentas, músicas, danças, modo tradicionais de vida, etc.), religiosas, etc. sempre foi mais importante que um passeio turístico.

A exceção, verdade seja dita, à fabulosa Esplanada das Mesquitas que habita desde a infância o nosso imaginário de tradição religiosa islâmica como um santuário sagrado da ascensão do último Profeta ao céu. Lembro-me do quadro da mesquita de Al-Aqsa pendurada na parede da casa de meus avós, ao lado da Kaaba em Meca e da mesquita do Profeta em Medina, os três santuários mais importantes do islã. Recordo as histórias religiosas sobre esse local e tenho ainda em mim a imagem do anjo Gabriel transformando-se em um cavalo alado para levar nosso profeta além do firmamento, a partir de Al-Quds – isso sempre me fascinou! Guardo na memória aquelas lindas pinturas persas e turcas (abaixo um exemplo clássico delas) que tentam capturar esse momento mágico religioso. Seu rosto está coberto, seguindo a tradição islâmica de não cultuar imagens, será que sua pele era clara ou não? Olhos azuis ou não? Cabelos lisos ou não? Loiros ou não?… isso nunca foi relevante para os mulçumanos. A aparência do Profeta não tem pertinência nenhuma, sua forma física muito menos, o que é relevante são as divinas palavras e ensinamentos de que ele é mensageiro. Os anjos têm rostos que lembram os persas ou turcos dependendo da pintura, o que nos faz crer que eles podem ter qualquer face, depende de quem os retrata. Ao mesmo tempo, que na minha cabeça de criança, essa visão do voo ao céu fundia-se com o incrível Pégasus da mitologia grega. Quando cresci pude entender que a viagem do Profeta era simbolicamente muito mais rica e fascinante do que a mitologia em questão, nela, ele sela a relação com o cristianismo, pois é o mesmo anjo da revelação e a mesma cidade sagrada; assume a tradição profética na linhagem direta do patriarca Abrão, uma vez que nessa viagem celestial acontece o famoso encontro entre ambos, o que, simbolicamente, serve para uni-los; ao mesmo tempo, que coloca os descendentes de seu filho Ismael (“árabes” – que inclui o próprio Profeta) na posição de orgulhar o pai que o havia abandonado… tudo isso na terra sagrada da Palestina, tendo Al-Quds como fundo. O profeta Mohammad (que a paz esteja com ele) foi um gênio do “simbolismo”!

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Além do mais, o povo palestino também nos é caro pela identidade étnica cultural. Somos descendentes de libaneses, oriundos de não mais de duas centenas de quilômetros da fronteira norte da Palestina. Nossa sensação é de estarmos em família, com feições, gestos, trajes, hábitos culinários, músicas, danças, etc. que nos são íntimos. Somos árabes-brasileiros ou brasileiros-árabes, gostamos de dabke e tâmaras, mas também de um bom samba e jabuticabas.

Retorno a ligação para meu pai, antes do prometido, com a resposta de pronto:

– Sim… é óbvio que vamos para a Palestina!

Visitar a Palestina invadida e colonizada exige outra dinâmica de viagem.  Isso porque os efeitos do processo de colonização afeta todas as dimensões da vida cotidiana na Palestina.  O que deveria ser apenas uma viagem para um país estrangeiro se torna uma preocupação muito maior.  Primeiro e mais importante é a dúvida se iremos conseguir entrar na Palestina. Existe a possibilidade real de sermos barrados pela imigração israelense. Nenhum de nós gostaria de ter que passar por tal imigração, mas a Palestina ocupada não possui rota de entrada, seja por terra, ar ou mar sob seu próprio controle. Assim a imigração tem que ser processada sempre por Israel, isto é, estamos à mercê da vontade do colonizador. Optamos por entrar pelo aeroporto David Ben Gurion,  nome de uma das figuras mais conhecidas e detestáveis entre todas as lideranças colonizadoras que já pisaram na Palestina. Aliás, a história deles poderia ser contada simplesmente pelo sangue dos inúmeros palestinos assassinados que cada um desses líderes sionistas têm nas mãos. É processo sórdido de escolha, algo do tipo “quem mais matou ou mandou matar palestinos” ganha como prêmio a condição de primeiro-ministro, ministros de governo, cargos de alta patente militar, etc. Israel é casa onde os genocidas e outros criminosos comuns são adorados.

Como militantes do campo da esquerda e da nobre Causa Palestina, com forte tendência anticolonial, temíamos a possibilidade real de sermos barrados.  Nos preparativos da viagem conversamos com muitos brasileiros e palestinos,  no sentido do que melhor fazer e como melhor agir para conseguir entrar na Palestina.  Somos orientados a não dizer nomes em árabe das cidades e locais onde iríamos visitar,  não usar o termo “Palestina”,  não se referir a nenhum grupo político palestino,  não citar em hipótese alguma determinados locais como a “Faixa de Gaza”, “campos de refugiados”…  Todas as orientações moldam o arcabouço dos desejos do movimento de colonização, isto é, a vontade desse de destruir qualquer indício da Palestina e de seu povo.

Malas prontas… chega o dia da viagem! O primeiro choque, para mim, foi já no aeroporto de Guarulhos: nunca tinha visto tantos judeus sionistas juntos. A bem verdade, como é uma comunidade muito restritiva e pequena no Brasil, de maneira geral, é difícil vê-los em pequenas e médias cidades do interior no sul brasileiro (locais onde vivemos e convivemos).  O voo de São Paulo a Tel Aviv é sem escalas e foi recheado da presença  de olhares desconfiados sobre nós.  A condição de árabe, que no nosso cotidiano passa normalmente despercebida é elevada ao nível de alerta, de terror, como um inimigo potencialmente perigoso.

Na escolha da refeição, durante o voo, é explícito a atenção que se volta para aqueles que não solicitam a opção de alimentos típicos da dieta judaica – kosher.  A passageira, ao lado meu, que até então trocara alguns sorrisos tímidos e pequenas gentilezas, mudara totalmente sua abordagem após a primeira refeição dentro do avião… fechando-se em si. Outra questão não menos interessante é que as outras opções de alimento eram todas com porco, alimento não aceito pelos mulçumanos, quando solicitamos uma opção sem tal carne (e não pedimos kosher) praticamente assumíamos parte importante da nossa identidade.

Durante o voo, caminhando para lá e para cá, com o tédio como companhia, pois são aproximadamente 14 horas numa lata de sardinha voadora e a necessidade de se mover para sair do incômodo espaço restritivo da poltrona econômica. A parte boa é que acabamos conversando com outras pessoas e entre essas brasileiros. Todos aparentemente turistas, um destes, em especial, parece ter conosco uma curiosidade maior.  Fala de suas viagens pelo mundo e descreve as da Jordânia e Egito.  Descobre nossos nomes, pergunta nossa origem,  no que trabalhávamos, onde ficaríamos e dá dicas de hotéis, para aonde viajaríamos e dá rotas, se conhecíamos alguém na Palestina, se tínhamos parentes na Palestina, tudo de uma forma descontraída.  As perguntas eram sempre pausadas por colocações próprias e indagações superficiais do tipo “vocês gostam do calor?” ou “já andaram de camelo?”. Esse passageiro que estava acompanhado de uma mulher, que se apresentara como sua esposa, movimenta-se por todo o avião, ora sentando em uma poltrona ora em outra, conversando em português com outros viajantes.

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Ao sairmos do voo, em território sob domínio do colonizador, esse senhor que falava muito bem o português e que se apresentara como um amigável turista se dirigia aos outros passageiros, pela primeira vez, em um hebraico aparentemente fluente e sumia definitivamente em portas destinadas a funcionários do aeroporto.

Um processo de colonização desse porte como projeto sionista exigiu e exige uma constante vigilância política de tipo policial sobre todos, em especial os árabes.  E essa sensação de se estar sendo vigiado, real ou imaginária, que nos faz mudar condutas.  Imaginar que a tão esperada viagem deveria excluir de nosso vocabulário normal essa palavra amaldiçoada pelo colonizador “Palestina”, quatro sílabas proibidas sob pena de sermos rejeitados a entrar em território palestino(!) e que exige um policiamento constante sobre quem as ama e dos que são solidário a ela – é uma realidade perversa e uma dura lição nos dada pelo opressor, clarividenciando a força colonizadora, desde o início desta viagem.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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