Enquanto se ampliam as denúncias do regime de apartheid, como fez agora a Anistia Internacional, Brasil e Santa Catarina fortalecem sua cumplicidade com o Estado de Israel. Assim, colocam-se na contramão do que a organização internacional recomenda, de que empresas não façam negócios que sustentem esse regime e que governos de todo o mundo reconheçam o crime contra a humanidade e não o apoiem, impondo embargo militar.
No último dia 8 de fevereiro, portanto uma semana após a divulgação do relatório da Anistia Internacional, o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), Marcos Pontes, se reuniu com o embaixador de Israel no Brasil, Daniel Zonshine, em Brasília, para discutir a cooperação com o apartheid.
A informação consta no site do MCTI. Na notícia, a sinalização por Pontes de possíveis parcerias em “compartilhamento de infraestruturas de pesquisa”, sobretudo nas áreas de saneamento e agropecuária. “Nós temos uma série de projetos na Embrapa [Empresa Brasileira e Pesquisa Agropecuária] e no CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] e precisamos desenvolver novos institutos de pesquisas agrícolas”, disse o ministro.
A ciência e a tecnologia no Brasil enfrentam desmonte dramático. O CNPq, principal agência de fomento e fundamental à formulação e condução de políticas públicas na área, tem sofrido cortes de financiamento e, segundo publicado na Agência Câmara Notícias, “está operando com o menor orçamento dos últimos 21 anos”. A Embrapa, que já vem enfrentando nos últimos anos redução nas verbas que lhe são destinadas, contará com R$ 43 milhões a menos neste ano, se os vetos de Bolsonaro ao Orçamento de 2022 forem mantidos no Congresso Nacional.
LEIA: A Anistia Internacional, o apartheid israelense e a voz dos palestinos
Para especialistas, o sucateamento da ciência, tecnologia e inovação no País, cujos cortes totais foram de 92% em 2021, estimula a evasão de cérebros – e serve de justificativa para parcerias. Em curso a recolonização do Brasil. Além de prejudicar inclusive a soberania nacional, no caso tem-se a agravante de essas parcerias sustentarem um regime de apartheid.
Tubarão e seu estado não ficam atrás
Essa cumplicidade segue a todo vapor também nos estados e municípios brasileiros. No último dia 15, o prefeito de Tubarão (SC), Joares Ponticelli, e o secretário de Desenvolvimento Econômico, Tecnologia e Inovação, Giovani Bernardo, conforme divulgado no site da Prefeitura, estiveram no Consulado de Israel em São Paulo para “diversos encaminhamentos, entre os quais a nova missão a Israel marcada para o início do próximo mês”.
A viagem anterior, em 2019, resultou na transformação de Tubarão em cidade-irmã de Hefer Valley. Em março visitarão pela primeira vez o local oficialmente. Entre Tulkarm e Haifa, este é resultado da limpeza étnica planejada conduzida em toda a área na consolidação da Nakba (a catástrofe com a formação do Estado de Israel em 15 de maio de 1948). Assentamentos como Ometz, Gan Yoshiyya e ´Olesh estão sob jurisdição do Conselho Regional de Hefer Valley. Todos eles foram estabelecidos em 1949, nas terras de Qaqun, em que seus 2 mil habitantes palestinos foram expulsos violentamente. Conforme relato de um dos que se tornaram refugiados, Abu Adnan, “as cidades costeiras foram caindo uma após a outra, até que chegou a nossa vez”. Da mesma aldeia, meu pai, Abder Raouf, tinha apenas 13 anos à época e jamais esqueceu aquele dia: “Aquele dia, mais ou menos cinco, seis horas da tarde, os judeus bombardearam aquele praça e mataram 38 pessoas. […] Nós estávamos jantando, a comida ficou no prato. Eu vi mulheres que a bomba explodiu, eu vi gente com barriga tudo aberta. Eu pessoalmente vi um amigo meu, a gente estudava junto. Eu vi, com minha idade. Eu passei a mão no rosto dele, na teste dele, pra reconhecer ele, tinha sangue pra tudo lado, […] eu nunca esqueço essa cena.” Os relatos constam de meu livro “Al Nakba – um estudo sobre a catástrofe palestina” (Editora Sundermann, 2017).
Sobre esses corpos e as aldeias costeiras, ergue-se Hefer Valley, que as autoridades de Tubarão chamam de coirmã e anunciam orgulhosamente que visitarão. Vislumbram possibilidades de intercâmbios e negócios, econômicos e culturais.
Ligações que, informam, são cada vez mais próximas. Obviamente para essas autoridades não importa a história manchada de sangue desde 1948 até os dias atuais. Mas não podem alegar desconhecimento em relação à denúncia de apartheid. Triste mácula para Tubarão e para o estado de Santa Catarina, que, conforme notícia do portal NSC Total, terá uma Câmara de Comércio Brasil-Israel, cujos passos para tanto foram objeto de encontro entre empresários e autoridades na capital Florianópolis no dia 31 de janeiro último.
LEIA: Contra o apartheid e o genocídio, exigir embargo militar a Israel
A alegação é que as parcerias beneficiarão a população. Se esse é mesmo o objetivo, em vez de abrirem as portas para negócios com o apartheid, deveriam estar concentrados em resolver questões básicas, como por exemplo ampliar o tratamento de esgoto. Santa Catarina está na vice-liderança entre os piores do Brasil nesse quesito. Tubarão, um dos municípios pioneiros na privatização do saneamento no País, conta apenas 25%.
As organizações de direitos humanos e movimentos solidários com o povo palestino em Santa Catarina e no Brasil têm muito trabalho pela frente. O relatório da Anistia Internacional é um poderoso instrumento para constranger essa cumplicidade com crimes contra a humanidade e pressionar pelo fim dos negócios que sustentam o apartheid. Ao que empresários e políticos anunciam com orgulho, nossa profunda vergonha.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.