Dentre as maiores ameaças do mundo contemporâneo, para além da expansão dos arsenais militares, sobretudo no campo nuclear e no terrorismo internacional, está o fenômeno da intolerância religiosa, sobretudo contra muçulmanos, a fim de demonizá-los sob os mais nefastos métodos. Os principais meios para fazê-lo referem-se à desinformação, distorção dos fatos ou estereótipos. Após décadas de ataques fundamentalmente políticos contra movimentos islâmicos, a velha política de discriminação religiosa voltou à moda.
Tais ataques se agravaram após o fracasso da ofensiva de governos globais contra o chamado “islamismo político”, com envolvimento de partes hostis ao fenômeno religioso em sua essência, visto como obstáculo ao liberalismo absoluto que busca superar instruções religiosas e seus princípios de ética. Além de razões culturais, a falta de conhecimento sobre os ensinamentos, valores e sistemas de governança do Islã, cujo fundamento é proteger os fracos dos gananciosos, é o principal motivo para tamanha hostilização.
É certo, no entanto, que o Islã foi submetido aos ataques mais agressivos, não confinados apenas à mídia. Ao contrário, políticas oficiais dos governos ocidentais também assumiram um caminho que prejudica a paz em todo o mundo. Na prática, o projeto liberal dá um tiro no próprio pé, quando busca censurar princípios que supostamente deveria adotar, sobretudo no campo das liberdades civis. A França, na vanguarda deste processo hostil, abandonou suas próprias recomendações liberais, reverenciadas historicamente, sobretudo no que se refere a escolhas pessoais referentes a crença, vestimenta e ritos. O presidente Emmanuel Macron tornou-se um dos mais radicais líderes franceses contra o Islã, com apoio veemente de grande parte da imprensa, a despeito de críticas proferidas por grupos de direitos humanos e do subsequente embaraço causado à imagem do projeto liberal. Em outubro, autoridades francesas fecharam uma mesquita em Allones, sob o pretexto de que propagava “ideologias extremas”. O Ministro do Interior, Gerald Darmanin, confirmou que as contas bancárias dos administradores da mesquita foram congeladas. Treze associações islâmicas e 92 mesquitas foram fechadas na França desde a posse de Macron, em meados de 2017.
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Em março de 2021, Ahmed Shaheed, relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU), constatou: “A islamofobia constrói um imaginário fictício em torno dos muçulmanos, então adotado para justificar ataques promovidos pelo estado, incluindo atos de discriminação, assédio e violência, com consequências graves a seus direitos humanos, incluindo liberdade de culto ou religião”.
De certa maneira, o então Presidente dos Estados Unidos Donald Trump foi pioneiro neste novo projeto ocidental para restringir o fenômeno religioso, com destaque para o islamismo. Seu mandato começou com um decreto para proibir cidadãos de sete países islâmicos de entrar nos Estados Unidos, em evidente violação de seus valores liberais, além de franca expressão de intolerância, ignorância e perseguição. Neste contexto, organizações americanas que trabalhavam para promover a democracia mudaram suas políticas para deixar de conferir apoio a instituições islâmicas consideradas “moderadas”, até então.
Um dos exemplos mais nítidos dessa mudança de postura repousa sobre o Fundo Nacional para a Democracia, com uma mudança abrangente nos cargos concedidos a agentes islâmicos no Oriente Médio, além da suspensão do apoio a diversas instituições. Durante o governo do novo presidente Joe Biden, o ataque prosseguiu mais discretamente e mesquitas e associações islâmicas no Ocidente passaram a sofrer questionamento legal sobre suas atividades e formas de financiamento, sob inúmeras justificativas, incluindo prevenção à lavagem de dinheiro e combate ao terrorismo. Muitas das entidades tiveram de fechar suas portas, principalmente na França, embora a legislação tenha como responsabilidade indiciar e julgar infratores e não transformar mesquitas em arenas para disputas políticas e domésticas.
Além disso, vimos a aplicação prática do provérbio “cada cidadão, uma sentinela”, ao passo que sacerdotes islâmicos foram obrigados a reportar fiéis às forças policiais, caso suspeitem de ideias ou atividades. Instituições beneficentes também têm de evitar questões concernentes às comunidades islâmicas no mundo, ao alegarem restrições legais a suas operações. A fim de evitar acusações de racismo, os órgãos oficiais preocupados em manter registro e monitorar tais entidades impõem novas políticas para pressioná-las ainda mais por meio de bancos ou empresas de contabilidade. As agências responsáveis então passaram a efetuar um “questionamento” cada vez mais frequente sobre a receita e os gastos de associações islâmicas, assim como seus apoiadores, o que é dito nos sermões de sexta-feira, eventos culturais e mesmo afinidades ideológicas ou políticas. Caso não cooperem, seus recursos são congelados.
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O Islã é então atacado em âmbito global por políticas ocidentais que alimentam tamanha demonização de suas práticas, por meio do fenômeno da islamofobia, ainda em voga apesar da luta de organizações de direitos humanos e entidades solidárias. Até mesmo a Índia — eventualmente descrita como a maior democracia do mundo, devido à sua população de mais de 1.25 bilhão de pessoas —, mobilizou uma veemente perseguição contra mulheres muçulmanas, ao impedí-las de utilizar o tradicional véu, ou hijab, nas escolas e universidades. Os ataques tornam-se mais graves ao observarmos que a comunidade islâmica representa um sexto da população indiana. Na última semana, o Human Rights Watch (HRW) destacou que a proibição do uso de véu infringe a lei internacional, sobretudo em termos de liberdades religiosas e acesso à educação sem discriminação.
Durante os últimos 25 anos, a maioria dos muçulmanos buscou promover um diálogo entre as mais diversas fés, na esperança de que sua presença no Ocidente seria favorável ao bom relacionamento entre as religiões, contribuindo para construir uma compreensão mútua, e não excludente, da humanidade. Todavia, é cada vez mais evidente que há forças que se opõem veementemente a tais pressupostos e que enxergam os muçulmanos com suspeita e sentimentos de ódio. Nos últimos anos, a tendência demonstrou-se por meio de ataques diretos e manifestações contrárias a grupos religiosos específicos. O uso do véu foi formalmente proibido em diversos países europeus, como França, Alemanha e Dinamarca. Nos últimos cinco anos, houve uma escalada nos mecanismos institucionais para reprimir os muçulmanos e restringir seus rituais religiosos.
Os responsáveis por tais ataques alegam que reduzir o fenômeno da religiosidade é necessário para preservar “valores ocidentais”. É comum acusar terceiros de atacar também a “democracia”. Agrega-se a isso o fenômeno populista baseado na ignorância e na falta de uma identidade autêntica. Tampouco é segredo que o fenômeno da islamofobia agravou-se ao explorar questões marginais para responsabilizar muçulmanos ou estrangeiros por problemas estruturais. Há ainda um enorme contrassenso no repúdio de políticos ocidentais à perseguição da minoria islâmica da província de Xinjiang, por parte do governo da China. Alguns analistas apontam hipocrisia, à medida que os ataques contra mesquitas e associações islâmicas em seus respectivos países continuam a ganhar terreno. Como se não bastasse, conceitos islâmicos são submetidos a distorção deliberada para atacar seus fiéis. Por exemplo, a noção de jihad, que ganhou atenção das potências ocidentais após ser reivindicada por grupos terroristas como Estado Islâmico (Daesh) e Al-Qaeda. A palavra tornou-se um tabu, mesmo para elucidar seu verdadeiro significado conforme as escrituras. É fato que agentes extremistas deturparam o termo ao longo dos anos, mas isso não revoga sua importância nos ensinamentos islâmicos, absolutamente legítimos.
O Islã realmente é o alvo da vez? Esta perseguição tem dimensões políticas e ideológicas frequentemente ocultas? O que significa a demonização de movimentos tradicionais islâmicos e suas manifestações nos países árabes e ocidentais?
Tais ataques não são meramente intelectuais ou ideológicos, mas também possuem o objetivo de aniquilar os próprios alicerces do fenômeno de filiação e identidade de fé.
A repressão a movimentos islâmicos com tamanha brutalidade ocorre em paralelo com a islamofobia e políticas discriminatórias em todo o mundo. A China persegue os uigures. A junta militar de Mianmar faz o mesmo com suas minorias islâmicas. Na Índia, o Partido Bharatiya Janata (BJP), liderado pelo atual premiê Narendra Modi, adota políticas extremistas ao proibir o uso do véu ou permitir o assédio generalizado contra mulheres muçulmanas na internet. Fenômenos semelhantes ocorrem na França, que começou a implementar ataques a mesquitas e banir o uso do véu. Os Estados Unidos, por sua vez, mobilizaram seus aliados no Oriente Médio, para perseguir políticos islâmicos enquanto normalizam laços com a ocupação israelense — ataque flagrante a ativistas solidários à causa palestina; isto é, a vasta maioria da população árabe e islâmica.
Este artigo foi publicado originalmente em árabe pela rede Al-Quds Al-Arabi, em 20 de fevereiro de 2022
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