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A crise na Ucrânia e suas implicações sobre os países árabes

23 de fevereiro de 2022, às 14h05

Presidente da Rússia Vladimir Putin durante encontro com seu homólogo azeri em Moscou, 22 de fevereiro de 2022 [MIKHAIL KLIMENTYEV/SPUTNIK/AFP via Getty Images]

Ao longo das décadas, o Oriente Médio foi a principal arena para disputas por influência e interesses entre Estados Unidos e Rússia, em diversos conflitos.

Foi assim até o fim do mandato do ex-presidente americano Donald Trump. O envolvimento de Washington nos conflitos regionais, no entanto, declinou desde a posse de Joe Biden, em janeiro de 2021, à medida que sua administração adotou uma estratégia mais voltada para a Ásia, com intuito de confrontar potenciais ameaças chinesas ou russas na região.

A dependência americana sobre recursos energéticos do Oriente Médio também decaiu, ao passo que a Casa Branca assumiu ainda uma política de reduzir tensões com Teerã e distanciar-se dos conflitos entre a república islâmica e os estados do Golfo.

Os Estados Unidos ofereceram até mesmo algumas concessões para convencer o Irã a retornar ao acordo nuclear de 2015, que assevera ao país a possibilidade de desenvolver tecnologia nuclear, para fins pacíficos, e livrar-se de persistentes sanções econômicas.

Mesmo as relações entre Washington e seus aliados no Golfo vivenciaram tensões devido a abusos de direitos humanos, a guerra no Iêmen e a imposição de restrições a alguns armamentos. Tudo isso levou a Arábia Saudita, em particular, e os Emirados Árabes Unidos, em algum grau, a voltar-se a Moscou e Pequim para adquirir seus aparatos militares.

Como se não bastasse, países como Egito, Irã e Iraque, entre outros, decidiram fortalecer sua cooperação econômica com Rússia e China. Alguns centros de decisão política em solo americano consideram, contudo, que a aproximação entre tais potências e alguns estados no Oriente Médio, nos campos de comércio e segurança, são um verdadeiro desafio aos interesses de Washington em toda a região.

Ao longo das décadas, muitos países do Oriente Médio sofreram as consequências da rivalidade e dos interesses das grandes potências, sobretudo entre Estados Unidos e a antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), que tornou-se a contemporânea Federação Russa.

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Alguns países temem agora que o conflito entre Rússia e Ucrânia e a eventual deflagração de uma guerra possa chegar às suas fronteiras e levar a instabilidade no Oriente Médio, em particular, e no mundo como um todo, principalmente se o Pentágono envolver-se de alguma maneira em tamanha disputa.

Não obstante, outros países na região, sobretudo estados exportadores de petróleo e gás natural do Golfo, consideram a crise como uma oportunidade para melhorar seu relacionamento com a atual gestão na Casa Branca, que busca maneiras de compensar a falta de gás natural russo nos mercados europeus. O fechamento dos gasodutos é uma ameaça concreta caso Biden imponha sanções a Moscou ou sob circunstâncias da guerra.

A possibilidade de interrupção no fornecimento de insumos energéticos aos estados ocidentais é fonte de preocupação tanto para a União Europeia quanto para os Estados Unidos. Ambos buscam medidas preventivas para reforçar sua segurança energética e impedir uma paralisação de larga escala no abastecimento. Caso avancem as sanções ocidentais, o mercado global de petróleo e gás natural deve vivenciar também uma enorme instabilidade nos preços.

Tais sanções impediriam nominalmente a compra de insumos energéticos da Rússia. A guerra pode levar ainda à interrupção das remessas devido aos perigos de transportá-las aos consumidores europeus por meio dos territórios ucranianos ou do Mar Negro.

Estimativas oficiais sugerem que os países europeus dependem da Rússia para cerca de 40% de sua demanda em gás natural, de modo que encontrar alternativas não será fácil.

Durante sua visita a Washington, no final de janeiro, o emir catariano Tamim bin Hamad debateu com o presidente americano opções para enviar gás natural liquefeito aos estados-membros da União Europeia, em caso de deflagração russa em solo ucraniano. Entretanto, analistas creem que transferir recursos catarianos à Europa demanda mais tempo. Além disso, Doha permanece sob uma série de compromissos de exportação com países asiáticos e africanos, o que restringe sua capacidade de compensar a paralisação do fornecimento da Rússia.

Taxa de câmbio em uma placa eletrônica da instituição financeira Rosselkhozbank JSC, em Moscou, Rússia, 22 de fevereiro de 2022 [Andrey Rudakov/Bloomberg via Getty Images]

Outros países produtores de gás natural, como Argélia e Egito, podem contribuir junto do Catar para mitigar a dependência europeia dos insumos encaminhados pela Rússia. Além disso, grandes exportadores de petróleo — como Arábia Saudita, Iraque, Kuwait e Emirados Árabes Unidos — podem auxiliar a Europa a diversificar suas importações de petróleo, ainda subordinadas às remessas de Moscou.

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Outro impacto refere-se a ondas de refugiados que fogem das zonas de guerra à União Europeia, além de pressões complementares sobre programas assistenciais em todo o mundo, dos quais ainda dependem milhões de refugiados do Oriente Médio e Norte da África.

Para além da pauta energética e migratória, a região do Oriente Médio e Norte da África pode ser afetada pela guerra em termos de insumos agrícolas e comércio de grãos. Muitos países árabes, como Iêmen, Líbano, Líbia, Egito, Tunísia e Argélia, dependem da importação de trigo produzido na Rússia e na Ucrânia, para suprir as demandas nacionais. Tais países — sob crises socioeconômicas ainda consistentes —serão particularmente afetados pelo aumento nos preços do trigo, devido a uma queda no fornecimento global da mercadoria.

As importações de trigo da Rússia e da Ucrânia representam aproximadamente 30% das transações globais sobre a matéria, além de outros bens alimentares como milho e óleo vegetal. A Ucrânia é ainda a quinta maior exportadora de trigo de todo o planeta. Os estados do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) dependem da importação de trigo e outros insumos para suprir as necessidades de sua população. Irã e Argélia estão entre os dez maiores importadores de trigo do mundo. O Egito deve sofrer invariavelmente, dado que 60% de suas importações de trigo provêm da Rússia e 30% da Ucrânia.

A intervenção russa na Síria e na Líbia levou efetivamente ao agravamento dos respectivos conflitos. Os governos árabes temem que ambas as crises e a subsequente tensão entre Moscou e os estados europeus, além do envolvimento de Washington, possam prejudicar esforços internacionais para solucionar as disputas políticas na região.

Enquanto isso, a maioria dos regimes árabes evita declarar posições sobre a crise em curso na fronteira russo-ucraniana, a fim de manter relações balanceadas com todas as partes. Entretanto, conforme avançam tensões entre Estados Unidos e Rússia, alguns governos podem ser forçados a assumir politicamente um lado, a despeito de suas consequências.

Neste entremeio, os países da região — como Síria, Arábia Saudita, Emirados, Iraque, Argélia e Irã — buscam preservar seus contatos com o Kremlin, pois dependem de equipamentos militares fabricados na Rússia e de sua colaboração para manter os preços de petróleo global conforme combinado previamente. Síria e Irã querem ainda aprimorar sua influência diplomática diante de suas confrontações com os Estados Unidos.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.