Enquanto assisto a crise russo-ucraniana desenvolver-se diante de nós, estou lendo o novo livro de Ben Rhodes “After the Fall: Being American in the World We’ve Made”. Trata-se de uma leitura fascinante e essencial para todos aqueles que buscam uma compreensão mais profunda sobre a agressão de Moscou contra a Ucrânia e, de maneira geral, sobre a ascensão do autoritarismo em todo o mundo.
Por que afinal a democracia está em recessão e a autocracia em ascendência? Por que agora? Questões que assombram grande parte da população mundial e que se tornaram foco de diversos livros, artigos e dissertações. Na busca de Rhodes por uma resposta, o ex-redator da Casa Branca e ex-conselheiro de segurança nacional para a presidência de Barack Obama, entre 2009 e 2017, viajou o mundo entrevistando dissidentes que resistem à recente onda de autoritarismo. Rhodes observa a conjuntura em sociedades fragilizadas, que se tornaram verdadeira arena para a luta entre a autocracia e a democracia, sobretudo nos últimos anos. Tratam-se de lugares como Hungria, Rússia, Mianmar, além de um país em particular aparentemente inesperado: os Estados Unidos. Em cada desses países a democracia sofre um retrocesso gradual, senão uma reviravolta completa.
O livro, no entanto, poderia facilmente incluir dezenas de outros estados que sofrem um declínio similar à estruturas semidemocráticas e reacionárias. A Índia me parece um exemplo. Sob o governo ultradireitista do partido Bharatiya Janata (BJP), a tradição histórica da democracia no país retrocedeu a uma imagem hedionda do nacionalismo que é profundamente hostil à sua comunidade islâmica.
Em todos esses casos, há um padrão familiar, ou até mesmo uma cartilha autoritária, por assim dizer, empregada com vasta maestria para converter democracias em autocracias. Suas principais características incluem uma noção perpétua de vitimização; o nacionalismo sectário; repressão à sociedade civil; renitência à globalização; desumanização cotidiana do outro; e cooptação de sentimentos genuínos de indignação popular.
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Com o protocolo em mãos para consolidar a queda ao autoritarismo, tudo que resta a esta claque de demagogos para se consolidar no poder é o uso perspicaz de tais técnicas, ao oferecer, portanto, um senso de pertencimento messiânico. Bons exemplos de figuras que adotaram tal postura são: Donald Trump, nos Estados Unidos; Benjamin Netanyahu, em Israel; Narendra Modi, na Índia; e Mohammed bin Salman, na Arábia Saudita.
Como sugere o subtítulo — ser americano no mundo que criamos —, o pecado original no retrocesso da democracia repousa precisamente sobre os ombros dos Estados Unidos. Como a única superpotência remanescente após a queda da União Soviética, em 1991, o comportamento de Washington tornou-se crucial para o ascenso do fenômeno autocrata. Rhodes destaca a reviravolta americana, por exemplo, ao revelar que o governo Trump contratou uma agência privada de inteligência israelense para orquestrar “operações clandestinas” contra a equipe de Obama, incluindo seu ex-assessor de segurança nacional, em particular. A ideia era difamar sua equipe para desacreditar o acordo nuclear iraniano.
Para Rhodes, todavia, as ações autoritárias de Trump não são a causa de tamanho declínio, mas sim um sintoma de uma doença muito mais hedionda que se abateu sobre a democracia. Rhodes faz uma análise histórica para elucidar a questão. Ele traça o declive aos atentados de 11 de setembro e a subsequente invasão no Iraque, sob o pretexto falacioso de combater armas de destruição em massa. “Ambos destruíram a fachada de que as elites dos Estados Unidos sabiam o que estavam fazendo” e ocasionaram dúvidas sobre “por que os americanos servem de avalistas da Ordem Mundial”. O fracasso colossal no Iraque e então no Afeganistão levou ainda a ações predatórias do mercado especulativo e dos bancos ocidentais, o que culminou na crise mundial de 2008. Toda e qualquer confiança remanescente ao sistema internacional liderado por Washington foi então estraçalhada. Os países da Europa e além foram expostos aos excessos da globalização, de uma maneira sem precedentes. A desigualdade atingiu os piores índices da história recente. A vasta maioria da população viu-se abandonada por seus respectivos governos, que conduziam resgates bilionários a elites e corporações.
Tais eventos sísmicos então avançaram sob uma cultura de hegemonia internacional mediada pela Casa Branca e seus aliados. Tudo isso maculou a legitimidade da chamada “ordem liberal internacional”, estabelecida pelos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial.
Em suma, a ordem mundial instituída pelos aliados vitoriosos resultou nos alicerces da política e economia liberal ainda vigente. Tais conceitos são incorporados em uma rede de entidades e regulações em âmbito global, como a Organização das Nações Unidas (ONU, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e diversas outras instituições multinacionais. As regras são formuladas e aplicadas pelas nações mais poderosas, com destaque para os Estados Unidos. Ao menos teoricamente, o intuito era superar o sistema unilateral dos grandes impérios e do colonialismo e permitir assim novas oportunidades para que todas as nações supostamente pudessem prosperar por meio do livre mercado, sob a segurança conferida por Washington.
A decadência lenta — no entanto, inexorável — de todo esse sistema mostrou-se particularmente crítica nas últimas duas décadas. Basta observar como os Estados Unidos e seus aliados ocidentais permitiram a contínua ocupação israelense e a expropriação das terras palestinas com intuito de salvaguardar ordenações liberais — sabotadas justamente por aqueles que tanto alegam protegê-las. Se a anexação ilegal de Golã, Jerusalém e Cisjordânia recebe o aval da Casa Branca, por que então figuras como Modi ou Putin respeitariam a soberania territorial de seus vizinhos, na Caxemira ou na Ucrânia? Por que ditadores no Oriente Médio e além levariam a série os direitos humanos, enquanto os Estados Unidos aceitam invariavelmente as políticas de apartheid de Israel?
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Ao invés de criar um mundo “seguro para a democracia”, como disse o presidente Woodrow Wilson no início do século XX, materializando a postura missionária de Washington em termos internacionais, as políticas desastrosas da Casa Branca no Oriente Médio e outras localidades do mundo deixaram um mundo fundamentalmente seguro às autocracias. Não há qualquer incentivo a figuras como Mohammed bin Salman, Abdel Fattah el-Sisi, Vladimir Putin e Victor Orban para que joguem conforme as regras. A indulgência americana sobre rupturas do estado de direito por seus aliados tradicionais de fato reverteu os meios de incentivo para ordenamento do sistema global — no qual infratores saem impunes ou até recompensados.
Quem sabe, o maior presente dos Estados Unidos aos autocratas contemporâneos seja uma versão do estado na qual, segundo Rhodes, “a máquina do governo foi redesenhada para lutar guerras infindáveis em casa e no exterior”. A guerra ao terror permitiu a instauração de uma infraestrutura rigorosa de segurança, além de um discurso notoriamente racista para investir em duas décadas de ocupação militar no Iraque e no Afeganistão. Em todo o mundo, autocratas exploram a ameaça do “terrorismo islâmico” para justificar abusos grosseiros de direitos humanos e subverter a democracia. Desnecessário dizer, a política de pânico sobre conspirações terroristas enraizou-se profundamente na sociedade e na cultura política do mundo todo, não somente dos Estados Unidos.
Líderes como o presidente chinês Xi Jinping também adotaram o pressuposto de guerra ao terror para objetivos próprios, como fizeram muitos regimes no Oriente Médio. Em 2014, um ataque terrorista matou dezenas de pessoas na província de Xinjiang. A imprensa estatal descreveu o episódio como “11 de setembro da China”. A seguir, Xi Jinping exortou seus oficiais a seguirem o roteiro americano, ao mobilizar uma veemente repressão que eventualmente levou à alocação de um milhão de uigures a campos de concentração.
É uma das grandes ironias da história que a incompetência e a arrogância dos Estados Unidos ao longo de duas décadas tornou-se crucial para o retrocesso da democracia e a nova onda de autocracia. Trata-se, no entanto, da dura realidade. Quem sabe, vivemos agora no crepúsculo da democracia, como muitos apontaram. A pergunta para Washington é a seguinte: poderia o país mais poderoso da história, fundado sobre conceitos de liberdade e igualdade, arrastar todos nós a um mundo tragicamente seguro para as autocracias?
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