Israel e Rússia, o roto falando do rasgado

A guerra travada por Putin na Ucrânia tem revelado a hipocrisia no mundo. Além da União Europeia, Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e Estados Unidos, que se apresentam cinicamente como agentes preocupados com a humanidade, também Israel se apressou a condenar os ataques russos como “violação da ordem internacional”.

É triste e vergonhoso ainda ver alguns que se dizem “progressistas” defendendo essa guerra por áreas de influência, colocando-se ao lado de Donald Trump, extrema direita europeia e o silêncio de Bolsonaro. Ignoram o derramamento de sangue do povo ucraniano, que sofre histórica opressão nacional russa – exceto por um breve intervalo nos primeiros anos pós-revolução russa de outubro de 1917, quando Lênin travou batalha pelo direito à autodeterminação. Esse processo foi enterrado com sua morte em 1924, período em que teve início a chamada “reação termidoriana” – uma analogia ao termo usado durante a Revolução Francesa (1789-1799) para definir o período no qual a ala direita dos revolucionários derrotou os jacobinos radicais e referência à burocratização stalinista do estado operário que levaria à restauração capitalista. Afora esse curtíssimo e inconclusivo período, apenas a partir de sua independência em 1991, pós queda do Muro de Berlim, a Ucrânia alcançou alguma liberdade nacional, porém com uma sequência de governantes autoritários, não sem luta pelo povo ucraniano.

Por seu país passa boa parte do gás natural exportado pelo governo de Putin para a Europa. Já a OTAN gostaria de ocupar o país e transformá-lo em base militar. E na disputa geopolítica, o povo oprimido não importa. Quem levanta a bandeira minimamente de direitos humanos, para ser coerente, deveria colocar-se ao lado do povo ucraniano, condenar fortemente a agressão militar e igualmente denunciar a hipocrisia dos poderosos, somando-se inclusive a milhares de russos que foram às ruas de Moscou e São Petersburgo contra o massacre perpetrado por Putin e enfrentaram obviamente repressão intensa, com muitos presos. É o que fez o artista sírio Aziz Asmar, através de simbólico grafite em solidariedade ao povo ucraniano pintado sob casas destruídas em Idlib, na Síria.

Remake 

Ele e o povo sírio conhecem bem esse filme. A revolução no país árabe, inaugurada em 2011, foi subjugada com a ajuda fundamental de Putin e outros aliados do ditador Bashar. E caluniada pelos mesmos “progressistas” que ou utilizam a lógica torta de “mal menor” ou chegam a usar o argumento ultrapassado de que a Síria é parte do “eixo da resistência” e “amiga dos palestinos”. Apagam da história a colaboração da dinastia Assad no poder há mais de 40 anos com massacres em campos de refugiados no Líbano e seu papel nefasto ao longo da história em esmagar o movimento de libertação nacional palestino. Para estes, ditadura na pele dos outros tudo bem, e a população que se levantou é “mercenária” ou “terrorista”. É a ideologia que os conduz a defender a agressão russa agora, repleta de fake news e generalizações absurdas.

Soldados israelenses podem ser vistos nas Colinas de Golan anexadas a Israel, em 1º de setembro de 2020 [Jalaa Marey/AFP/Getty Images]

Como destaca o site Middle East Eye, a aliança Putin-Bashar rendeu a réplica a Israel de Dmitry Polyanskiy, enviado da Rússia às Nações Unidas, em twitter no último dia 24 de fevereiro: “Estamos preocupados com os planos anunciados de Tel Aviv de expandir a atividade de assentamentos nas Colinas de Golã ocupadas [em 1967], o que contradiz as disposições da Convenção de Genebra de 1949. A Rússia não reconhece a soberania de Israel sobre as Colinas de Golã, que são parte da Síria.” Chama a atenção a escolha criteriosa de Golã para a réplica. Sim, as colinas sírias devem ser devolvidas, mas toda a Palestina está também ocupada.

Fato é que Rússia e Israel não estão em lados opostos, como mostra o ex-diplomata israelense Itamar Rabinovich em reportagem publicada no site  Isto é Dinheiro. Segundo ele, as relações do estado sionista com a Rússia de Putin “melhoraram”. Com a União Soviética, eram, disse, “muito ruins”.

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Vale lembrar que sob o estado soviético burocratizado e liderança de Stalin, a antiga URSS votou a favor da partilha da Palestina na Assembleia Geral das Nações Unidas em 29 de novembro de 1947, apoiou a imigração sionista com fins de colonização e forneceu armas via Tchecoslováquia às paramilícias sionistas que foram decisivas à limpeza étnica do povo palestino em 1948. Stalin foi ainda o primeiro a reconhecer de fato e de direito o Estado racista de Israel no dia 17 de maio daquele ano, apenas dois dias após a Nakba (catástrofe palestina). Em 11 de dezembro, a União Soviética votou contra a Resolução 194 da ONU, relativa ao direito de retorno dos milhares de refugiados da Nakba – 2/3 da população palestina, expulsa violentamente de suas terras.

Somente a partir de 1955, com a ascensão dos governos nacionalistas na região – quando, portanto, já havia dado sua contribuição fundamental à formação do estado sionista em 78% da Palestina histórica –, houve um intervalo nesse apoio total, quando a URSS perdeu o interesse estratégico por Israel e voltou seus olhos ambiciosos para os países árabes. O que durou até 1991. É o período que o ex-diplomata israelense cita como de relações “muito ruins”, sem citar a contribuição determinante para que o projeto colonial sionista na Palestina se materializasse.

Hipocrisia

Israel, que tenta se apresentar como um estado democrático burguês qualquer, encobrindo sua natureza colonizadora e posição assumida de enclave militar do imperialismo, é o típico caso expresso no ditado popular: o roto falando do rasgado. O povo palestino enfrenta opressão nacional há cerca de 74 anos pelo estado sionista, mestre em ignorar todas as resoluções, convenções e tratados internacionais para seguir com a limpeza étnica, expansão colonial agressiva e regime de apartheid. Até mesmo organizações internacionais do porte da Human Rights Watch e Anistia Internacional reconhecem o apartheid, mas Israel, como não poderia deixar de ser, dá uma banana para elas. E temperada pela falsa propaganda preferencial de taxá-las de antissemitas, como lhe é instrumental para silenciar seus críticos.

Ao mesmo tempo, Israel vê aqui uma oportunidade de expandir ainda mais a agressiva colonização da Palestina em curso, via instalação de mais assentamentos. A ministra da “Imigração”, Pnina Tamano-Chata, declarou, segundo  reportagem do portal G1, a disposição “em receber milhares de judeus da Ucrânia”. Vale observar que a esmagadora maioria do povo ucraniano não está entre estes: dos 43 milhões, 85% são cristãos e apenas 0,13% são judeus, conforme dados da Association of Religion Data Archives (The Arda) relativos a 2015.

O sangue do povo ucraniano é usado para a contínua Nakba. Nada de novo sob o sol. Israel é mestre em sustentar seus crimes contra a humanidade lucrando com genocídio, como se vê no Brasil, em que suas tecnologias militares nas mãos das polícias derramam o sangue pobre e negro nas favelas e periferias. Israel e Rússia, o roto e o rasgado.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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