Para entender exatamente quais objetivos e interesses dos EUA estão ameaçados hoje, é necessário entender a política dos EUA e “a bolha”, ou seja, o planejamento central do governo que não pode ser explicado se se considera exclusivamente uma política ostensivamente democrática. A política que se tem de examinar não é a política dos senadores e representantes dos EUA que representam seus distritos eleitorais ou estados no Congresso.
É mais realista ver a política econômica e externa dos EUA em termos do Complexo Militar-Industrial, do Complexo de Petróleo e Gás (e Mineração) e do Complexo Bancário e Imobiliário, do que em termos da política ‘política’ dos Republicanos e Democratas. Os principais senadores e parlamentares não representam tanto seus estados e distritos quanto representam os interesses econômicos e financeiros de seus principais contribuintes de campanha política. Um diagrama de Venn mostraria que, no mundo de hoje, pós-Cidadãos Unidos, os políticos dos EUA representam seus contribuintes de campanha, não os eleitores. E esses contribuintes enquadram-se basicamente em três blocos principais.
Três principais grupos oligárquicos compraram o controle do Senado e do Congresso, para instalar seus próprios formuladores de políticas no Departamento de Estado e no Departamento de Defesa.
O primeiro desses grupos oligárquicos é o Complexo Industrial-Militar (ing. MIC) – fabricantes de armas, como Raytheon, Boeing e Lockheed-Martin, que diversificaram amplamente suas fábricas e empregos em quase todos os estados, e especialmente nos distritos eleitorais, onde são eleitos os principais chefes dos comitês do Congresso. A base econômica desse bloco é a renda monopolista, obtida sobretudo da venda de armas à OTAN, aos exportadores de petróleo do Oriente Médio e a outros países, todos eles com superávit na balança de pagamentos.
As ações dessas empresas dispararam imediatamente após a notícia do ataque russo, liderando uma alta de dois dias no mercado de ações, quando os investidores reconheceram que a guerra de alto custo em mundo de “capitalismo do Pentágono” (como Seymour Melman o descreveu) oferecerá o ‘guarda-chuva’ da Segurança Nacional, aos lucros de monopólio das indústrias da guerra. Senadores e representantes da Califórnia e de Washington no Congresso tradicionalmente representaram o Complexo Industrial-militar, além do Sul, sempre solidamente pró-militares.
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A escalada militar da semana passada promete aumento nas vendas de armas para a OTAN e outros aliados dos EUA, enriquecendo os reais eleitores desses políticos. A Alemanha rapidamente concordou em aumentar os gastos com armas para mais de 2% do PIB.
O segundo grande bloco oligárquico é o setor que extrai renda do petróleo e gás, junto com a mineração, aproveitando os favores fiscais que os EUA garantem a empresas que arrancam todos os recursos naturais do solo e os enviam principalmente para a atmosfera, para os oceanos e às fontes de água.
À semelhança do setor bancário e imobiliário (BARE), que procura maximizar a renda econômica e maximizar os ganhos de capital para habitação e outros ativos, o objetivo do Oil, gas and mining (OGAM) é maximizar o preço da energia e matérias-primas que vende, de forma a maximizar a renda que aufere de recursos naturais. Monopolizar o mercado de petróleo da Área do Dólar e isolá-lo do petróleo e gás russos tem sido alta grande prioridade dos EUA há mais de um ano, posto que o gasoduto Nord Stream 2 ameaçou ligar mais estreitamente as economias da Europa Ocidental e da Rússia.
Se as operações de petróleo, gás e mineração não estão presentes em todos os distritos eleitorais dos EUA, pelo menos os seus investidores, sim estão. Senadores do Texas e outros estados produtores e mineradores ocidentais de petróleo são os principais lobistas do setor OGAM. E o Departamento de Estado tem forte influência do setor do petróleo, e garante cobertura de Segurança Nacional aos incentivos fiscais especiais do setor.
O objetivo político auxiliar é ignorar e rejeitar impulsos ‘ambientais’ para substituir petróleo, gás e carvão por fontes alternativas de energia. Assim sendo, o governo Biden apoiou a expansão da perfuração offshore; apoiou o oleoduto canadense até a fonte do mais sujo petróleo do mundo, nas areias betuminosas de Athabasca, e celebrou o renascimento do fracking nos EUA.
A extensão da política exterior é concebida para impedir que outros países que não cedem o controle do próprio petróleo, gás e a exploração mineral às empresas norte-americanas do setor de petróleo, gás e min(Finance, Insurance and Real Estate – FIRE)eração (OGAM) venham a competir com fornecedores dos EUA nos mercados mundiais. Isolar Rússia (e Irã) dos mercados ocidentais reduzirá a oferta de petróleo e gás, o que fará subir preços e, igualmente, os lucros.
O terceiro maior grupo oligárquico é o setor simbiótico de Finanças, Seguros e Imóveis (Finance, Insurance and Real Estate – FIRE) – que é o moderno sucessor capitalista-financeiro da velha aristocracia fundiária pós-feudal da Europa, que vive de rendas de terra. Com a maioria das moradias no mundo de hoje já ocupadas pelos proprietários (embora com taxas crescentes de casas fechadas e proprietários ausentes, desde a onda dos Despejos de Obama pós-2008), o aluguel da terra é pago em grande parte ao setor bancário, na forma de juros hipotecários e amortização de dívidas (aumento na razão dívida/capital próprio, à medida que os empréstimos bancários inflacionam os preços da habitação).
Cerca de 80% dos empréstimos bancários norte-americanos e britânicos vão para o setor imobiliário, inflando os preços dos terrenos para gerar ganhos de capital – que são efetivamente isentos de impostos para os proprietários ausentes de casas fechadas.
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Esse bloco bancário e imobiliário centrado em Wall Street tem base ainda mais ampla, distrito a distrito, que o Complexo Industrial-militar.
Seu senador de Wall Street, por Nova York, Chuck Schumer, chefia o Senado, há muito apoiado pelo ex-senador de Delaware, da indústria de cartões de crédito Joe Biden e pelos senadores de Connecticut do setor de seguros centrado naquele estado.
Domesticamente, o objetivo desse setor é maximizar a renda da terra e os ganhos de “capital” resultantes do aumento da renda da terra.
Internacionalmente, o objetivo do Complexo Finanças, Seguradoras e Imobiliárias é privatizar economias estrangeiras (sobretudo para garantir nas mãos dos EUA o privilégio de criar crédito). Isso, para transformar a infraestrutura governamental e os serviços públicos em monopólios rentistas, para fornecer serviços básicos (assistência médica, educação, transporte, comunicações e tecnologia da informação) a preços máximos em vez de preços subsidiados para reduzir o custo de viver e de fazer negócios.
Wall Street, vale lembrar, sempre esteve intimamente fundida com a indústria de petróleo e gás (vide os conglomerados bancários Citigroup e Chase Manhattan, dominados por Rockefeller).
Os setores de Finança, Seguros e Imobiliárias, o Complexo Industrial-militar e o de gás, óleo e mineração são os três setores rentistas que dominam o capitalismo financeiro pós-industrial de hoje. Suas fortunas mútuas dispararam à medida que as ações da Complexo Industrial-militar e do setor OGAM aumentaram. E as medidas para excluir a Rússia do sistema financeiro ocidental (e agora parcialmente do SWIFT), juntamente com os efeitos adversos de isolar as economias europeias da energia russa, prometem estimular um influxo de títulos financeiros securitizados dolarizados.
Como mencionado no início, é mais útil ver a política econômica e externa dos EUA em termos dos complexos baseados nesses três setores rentistas, do que em termos da política política de Republicanos e Democratas. Os principais senadores e representantes do Congresso não representam seus estados e distritos tanto quanto representam os interesses econômicos e financeiros de seus principais doadores. É por isso que nem a indústria nem a agricultura têm hoje papel dominante na política externa dos EUA.
A convergência dos objetivos políticos dos três grupos rentistas dominantes dos EUA supera os interesses do trabalho e mesmo do capital industrial, para além do Complexo Industrial-militar.
Essa convergência é a característica definidora do capitalismo financeiro pós-industrial de hoje. É basicamente uma reversão ao rent-seeking econômico, que é independente da política do trabalho e do capital industrial.
A dinâmica que ainda temos de rastrear hoje é o motivo pelo qual essa ‘bolha assassina’ oligárquica entendeu que fosse de seu interesse provocar a Rússia no que a Rússia evidentemente via como questão de vida ou morte (resistir aos ataques cada vez mais violentos nas províncias de língua russa do leste da Ucrânia de Luhansk e Donetsk), além de outras ameaças mais amplas que o Ocidente fez à Rússia.
Como o presidente Biden explicou, a atual escalada militar orquestrada pelos EUA (“Provocar o Urso”) não tem a ver, realmente, com a Ucrânia. Biden prometeu desde o início que nenhum soldado norte-americano estaria envolvido.
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Mas continua a exigir, há mais de um ano, que a Alemanha impeça o gasoduto Nord Stream 2 de abastecer a indústria e habitação na Alemanha com gás de baixo preço; isso feito, que a Alemanha volte-se para os fornecedores americanos, de preços muito mais altos.
As autoridades norte-americanas tentaram primeiro impedir que fosse completada a construção do gasoduto.
As empresas que ajudaram na construção foram sancionadas, mas finalmente a própria Rússia completou o oleoduto.
A pressão dos EUA então voltou-se contra os tradicionalmente dóceis políticos alemães, alegando que a Alemanha e o resto da Europa enfrentavam uma ameaça da Rússia, contra Segurança Nacional daqueles países. Essa ameaça consistiria de a Rússia vir a desligar o gás, presumivelmente para extrair algumas concessões políticas ou econômicas.
Trajeto do Gasoduto Russia-Alemanha [ Wikipedia]Não conseguiram inventar nenhuma específica demanda russa nessa direção. Então deixaram tudo vago, uma ameaça obscura, espécie de ‘bolha assassina’. A Alemanha se recusou a autorizar que o gasoduto Nord Stream 2 entrasse oficialmente em operação.
Um dos principais objetivos de hoje é monopolizar o mercado de embarques de gás natural liquefeito (GNL) dos EUA. Já sob a administração de Donald Trump, Angela Merkel foi chantageada para prometer gastar US$ 1 bilhão em novas instalações portuárias para navios-tanque dos EUA descarregarem gás natural para uso alemão.
A vitória nas eleições democratas em novembro de 2020, seguida pela aposentadoria de Merkel, que saiu da cena política alemã, levou ao cancelamento desse investimento em portos, deixando a Alemanha realmente sem muita alternativa à importação de gás russo para aquecer suas casas, fornecer energia elétrica e fornecer matéria-prima para sua indústria de fertilizantes e, consequentemente, para manter a produtividade da agricultura alemã.
Assim, o objetivo estratégico mais premente dos EUA no confronto da OTAN com a Rússia é fazer aumentar os preços do petróleo e do gás, sobretudo em detrimento da Alemanha. Além de gerar lucros e ganhos no mercado de ações para as companhias petrolíferas americanas, os preços mais altos da energia tirarão grande parte do ímpeto da economia alemã.
Essa é a terceira vez em um século que os Estados Unidos derrubam a Alemanha – a cada vez aumentando o controle sobre uma economia alemã cada vez mais dependente dos EUA para importações e liderança política, com a OTAN no controle efetivo contra qualquer resistência nacionalista doméstica.
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Preços mais altos de gasolina, aquecimento e outras energias também prejudicarão os consumidores dos EUA e de outras nações (especialmente as economias com déficit de energia do Sul Global) e deixarão menos do orçamento das famílias dos EUA para gastos com bens e serviços domésticos. Isso pode espremer proprietários de imóveis e investidores marginalizados, levando a uma maior concentração de proprietários ausentes de imóveis residenciais e comerciais nos EUA, juntamente com aquisição de proprietários de imóveis em dificuldades em outros países que enfrentem custos crescentes de aquecimento e energia. Para a ‘bolha assassina’ pós-industrial, esse efeito não passaria de dano colateral.
Os preços dos alimentos também subirão, encabeçados pelo trigo. (Rússia e Ucrânia respondem por 25% das exportações mundiais de trigo.) O aperto alcançará também muitos países com déficit alimentar do Oriente Médio e do Sul Global, piorando a balança de pagamentos e ameaçando calotes da dívida externa.
As exportações de matérias-primas russas podem ser bloqueadas pela Rússia em resposta às sanções à moeda e ao sistema SWIFT. Pode haver quebras nas cadeias de suprimentos de materiais-chave, incluindo cobalto, paládio, níquel e alumínio (cuja produção consome muita eletricidade, seu principal custo – o que tornará esse metal mais caro).
Se a China decidir ver-se como a próxima nação ameaçada e juntar-se à Rússia num protesto comum contra a guerra comercial e financeira dos EUA, as economias ocidentais sofrerão choque sério.
O sonho de longo prazo dos Novos Guerreiros da Guerra Fria é desmembrar a Rússia, ou pelo menos restaurar a cleptocracia gerencial Yeltsin/Harvard Boys, com oligarcas buscando lucrar com as privatizações nas bolsas de valores ocidentais.
O sonho de longo prazo do setor OGAM (setor de petróleo, gás e mineração) ainda é comprar o controle majoritário da Yukos e da Gazprom. Wall Street adoraria recriar um boom do mercado de ações russo. Com os investidores da Complexo Industrial-militar antecipando alegremente a perspectiva de vender mais armas para ajudar a trazer tudo isso.
Trecho extraído do artigo “EUA derrubam a Alemanha pela terceira vez em um século”, publicado originalmente em inglês no site Monthly Review Online.
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