Neste 8 de março, a resistência das mulheres palestinas como inspiração

Longe dos olhos do mundo, uma menina com necessidades especiais de apenas 11 anos tem a mandíbula fraturada após ser atingida por uma bomba de efeito moral israelense em sua terra, Jerusalém. Uma jovem de apenas 15 anos é brutalmente agredida e detida pelas forças de ocupação sionistas durante protestos na mesma cidade palestina contra a contínua Nakba (catástrofe com a autoproclamação do Estado racista de Israel em 15 de maio de 1948 mediante limpeza étnica planejada). Cerca de 40 meninas e mulheres seguem nos odiosos cárceres do colonizador, em que a tortura é regra. As imagens da última semana são uma pequena mostra do dia a dia delas sob apartheid, mas também de sua resistência sob todos os meios. Um legado das gerações anteriores que carregam com orgulho e que deve estar representado neste 8 de março através das bandeiras palestinas ao redor do mundo.

Neste Dia Internacional da Mulher, data em que ganha visibilidade a luta permanente contra a violência e discriminação de gênero em todo o globo, não pode faltar a solidariedade às mulheres da Palestina à Ucrânia. Basta lembrar, neste último caso, o abjeto áudio vazado do parlamentar brasileiro Arthur do Val, o Mamãe Falei, para quem cassação do mandato é pouco. No caso palestino, urge exigir o fim do que esse povo vem denunciando como “padrão duplo”: a invisibilidade e desqualificação do apartheid que já dura 74 anos e agora é reconhecido até pela Anistia Internacional, ante a hipocrisia e racismo dos poderosos que usam agora o sofrimento do povo ucraniano para posar de salvadores da humanidade e, assim, tirar vantagens às custas do sangue derramado.

A primeira batalha é contra a desinformação e fake news. As palestinas e árabes em geral se enfrentam com uma visão orientalista – de um oriente atrasado, de bárbaros, mulheres exóticas e submissas em uma sociedade homogênea e violenta por natureza, ante um ocidente de civilizados e lógicos.

Contra essa concepção, construída para a dominação, a resistência das mulheres palestinas explicita ao mundo que elas não estão alheias às lutas anti-imperialistas, anticoloniais. Não são submissas por natureza, uma massa absolutamente uniforme escondida atrás de véus que lhe são impostos, como geralmente a mídia hegemônica de massas as apresenta – e parte do movimento feminista no “Ocidente” corrobora, ao fundar-se em estereótipos.

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Sob o manto de que tais mulheres precisam ser salvas de sua sociedade e cultura natais, acaba por servir à dominação colonial. Um feminismo liberal que não enxerga a relação entre exploração e opressão de gênero. Que enxerga necessariamente um símbolo da opressão no véu islâmico (que apenas muçulmanas usam – e nem todas). O problema não é seu uso, mas sua imposição.

Feminismo anticolonial

Na Palestina e em toda a região, insurge-se o chamado “feminismo anticolonial”, que trava a luta contra a opressão machista e a colonização simultaneamente. Considera a emancipação de gênero inseparável da libertação da Palestina. Desconstrói as representações orientalistas, reducionistas e generalistas, e preenche o vácuo de um movimento que desvia o olhar para as relações de poder que são fundantes à opressão de gênero. Parte da desconstrução proposta pelo feminismo anticolonial – que se coaduna com vertentes como os feminismos antirracista e islâmico – é resgatar o protagonismo das mulheres árabes e muçulmanas na História.

Protagonismo

Como aponta a feminista egípcia Nawal El Saadawi em seu livro “A face oculta de Eva – As mulheres do mundo árabe”, foram elas pioneiras nos protestos contra os primeiros assentamentos sionistas ao final do século XIX – a serviço da colonização de terras e conquista do trabalho, que integravam o projeto sionista de limpeza étnica para constituição de um estado exclusivamente judeu na Palestina (Israel). Já em 1903, período que marca o começo da segunda onda de imigração sionista, criaram uma associação de mulheres e a esta outras se seguiram, ainda com fins assistenciais e  trazendo como uma das demandas fundamentais a educação de meninas.

Nos anos 1920, a colonização na Palestina, sob mandato britânico pós-Primeira Guerra Mundial (1914-1918), se acirra e sua atuação ganha outros contornos. Mulheres formaram vários comitês populares para articular protestos e demais ações de desobediência civil, bem como garantir auxílio a feridos em manifestações. Em 1921, constituíram a primeira União de Mulheres Árabes-Palestinas, que organizou protestos contra o mandato britânico e a colonização sionista avalizada pela Declaração Balfour – em que a Inglaterra, em 2 de novembro de 1917, dá sinal verde à constituição de um lar nacional judeu em terras palestinas mediante a planejada limpeza étnica.

Das letras aos campos de batalha, as mulheres utilizam as armas de que dispõem. Há 73 anos, Nariman Khorsheed (1927-2014) fundou na cidade de Yafa – juntamente com sua irmã Moheeba – a primeira brigada feminina palestina, denominada Al Zahrat al-Uqhuwan (Flores de Crisântemo), para lutar contra a expulsão pelas forças paramilitares sionistas de suas terras. Em 1948, surgiram outras brigadas femininas e inclusive um grupo misto, de 100 combatentes, liderado por Fatma Khaskiyyeh Abu Dayyeh. Na revolução palestina de 1936-1939 contra o mandato britânico e a colonização sionista – cujas causas e análise da derrota estão explicitadas por Ghassan Kanafani em seu livro “A revolta de 1936-1939 na Palestina” (Editora Sundermann) –, ela esteve no comando do local de armazenagem das armas dos revolucionários.

No período, mulheres organizaram grandes marchas e comitês populares. Além de promoverem protestos, recolhiam fundos para assistência às famílias dos mortos e prisioneiros e auxiliavam no transporte de insumos básicos e armas. Nas aldeias, lutavam lado a lado com os homens para defender suas terras. Uma dessas heroínas é Fatma Ghazal, morta em combate no dia 26 de junho de 1936.

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Já diante da consolidação do projeto sionista, em 1965, foi criada a União Geral das Mulheres Palestinas, vinculada à Organização para a Libertação da Palestina (OLP), em cuja reunião de fundação havia duas mulheres, cuja participação foi decisiva.

Ao final dos anos 1960 e início dos 1970, diversas mulheres partiram para a ação direta, diante da omissão internacional à violação cotidiana de direitos humanos e a expansão israelense, que em 1967 resultou na ocupação por parte dessa potência bélica de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental, os 22% restantes da Palestina histórica após a Nakba.

Nas intifadas (levantes populares) de 1987-1993 e 2000-2004, novamente as mulheres se colocaram na linha de frente, ao lado dos homens. Na primeira, para se ter uma ideia, um terço das baixas era da parcela feminina. O número de mulheres detidas passou de centenas do início da década de 1970 para milhares nos anos 1980. Desde 1967, estima-se que 10 mil passaram pelas prisões políticas israelenses – e enfrentaram a tortura institucionalizada, com inclusive ameaças e violência sexual.

São heroínas desconhecidas e em sua maioria invisibilizadas pela história, como ocorre em todo o mundo, em todos os processos de luta. Que sua resistência heroica sirva de guia e inspiração neste 8 de março. Contra os que nos oprimem e nos exploram, por uma Palestina livre do rio ao mar. Para que todas sejamos livres.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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