Diante do conflito russo-ucraniano e obviamente, da perspectiva cada vez mais real de uma Nova Guerra Fria, unificando o Sistema Cinco Olhos (os países anglo-saxões liderados pelos EUA, secundado por Grã-Bretanha, Canadá, Austrália e Nova Zelândia) e a União Europeia em contraponto à aliança China-Rússia (nesta ordem), decidi rever alguns textos da década passada. Assim na dimensão da história recente, estamos diante de uma nova periodização.
A primeira fase do mundo pós-bipolar termina no dia 11 de setembro de 2001, quando criaturas (salafistas da Al Qaeda) atacam criadores (atingindo alvos dos Estados Unidos, seus co-patrocinadores). A segunda fase do século XXI, ou a primeira virada destes cem anos, se deu com a “Farsa com nome de Crise” (ver livro), quando o sistema especulativo de acumulação encontrou seu próprio limite, levando a maior transferência de renda da história dos países industrializados. A terceira fase seria no pós-2008 até o mês de fevereiro de 2022, quando a operação militar da Rússia na Ucrânia leva a uma guerra convencional na Europa e coloca o sistema hegemônico realmente contra a parede. Mais uma vez, assim como em 2008, os países europeus seguem as determinações de sua liderança de fato, entrando no mesmo lodaçal dos estadunidenses.
Um pouco de revisão teórica para escalonar os conflitos
Na década passada, especificamente em 2016, eu afirmava a existência de três níveis de conflitos:
O Grande Jogo: “Proponho uma análise bastante acessível, ao dividir o Jogo Internacional em três níveis. O primeiro nível é o Grande Jogo, em nível geoestratégico – portanto, ultrapassando o determinismo geográfico e o posicionamento original dos Estados.”
O nível regional: “O segundo nível talvez seja o mais perceptível, onde em regiões bastante conturbadas, as potências de nível médio, operando como pivôs geopolíticos e com aliados dispostos a fazer guerras indiretas se aliam impondo suas pautas também a grandes potências. No caso específico do Oriente Médio, verificamos o jogo de Israel, Turquia, Arábia Saudita e Irã com níveis elevados de autonomia diante da força de proteção de EUA-Otan e com menor presença, a Rússia. Quase sempre os grupos dominantes domésticos costumam ter poderes praticamente absolutos de veto dentro do jogo regional quando há um nível elevado de conflito. O jogo de nível dois confunde-se com os aliados domésticos e pode pender de lado segundo a condição de domínio nos Estados e territórios soberanos”.
O terceiro nível: “O terceiro nível é – de fato – o único onde os protagonistas são os povos em luta. Estes podem ter dimensão doméstica ou mesmo regional, sempre e quando há o protagonismo dos agentes que atuam a partir de países ou pertencimentos, como através da etnicidade.”
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A caracterização que apresento acima seria totalmente aplicável, mas especificamente no caso da América Latina. Na massa continental Eurasiática, os conflitos que ganham atenção dos países líderes, terminam sendo visibilizados ou tornados invisíveis na proporção em que são transnacionalizados. Desse modo, proponho uma revisão teórica, observando que o direito ancestral de quem reside no lugar está acima de qualquer lógica geopolítica ou geoestratégica, mas não se aplica necessariamente diante da pressão regional, internacional e transnacional nos conflitos.
Por exemplo, a entidade sionista, como inimiga estratégica dos povos árabes e de nossos países amigos, tem a capacidade de estar presente nos centros de poder e decisão em escala planetária, de uma forma desproporcional ao seu peso econômico e mesmo militar. Portanto, essa variável, os laços de proteção e vassalagem, seguem operando como definidores. Deste modo, os conflitos de tipo três fora da África Subsaariana e da América Latina, tendem a ser regionalizados pelo próprio peso das lideranças de seus entornos.
Estamos diante de uma bipolaridade ampliada
Em 2013 e 2014, este analista escrevia sobre o conflito dentro da Ucrânia e especificamente sobre a anexação da Crimeia e a projeção de poder russa.
“A Rússia retomou seu espaço e gravitação no cenário internacional e isto é um fato inequívoco. Desde o final da Guerra Fria, ou seja, em pelo menos vinte anos, jamais se viu um poder estatal afrontar os Estados Unidos, contrapondo as vontades de Washington deste modo. Tomamos como marco a manobra diplomática e as reais ameaças militares proclamadas por Vladimir Putin de que, se a Síria fosse bombardeada sem o aval do Conselho de Segurança da ONU, a Rússia faria bombardeios de retaliação nos aliados dos EUA no Oriente Médio.”
“As derrotas russas e dos aliados sérvios ainda não foram digeridas e são retroalimentadas como uma humilhação diante da Superpotência e o “ocidente”. Na Grande Rússia, os apparatchik político-militares reorganizaram a defesa para reconstruir a esfera de influência Eurasiana. Para isso, é necessário reconquistar ao menos aquilo que seria a sua área de respiro.”
Os dois parágrafos acima, escritos após a anexação da Crimeia (fevereiro e março de 2014), evidenciavam que as relações macro entre EUA e Rússia caminhavam para uma posição de choque. Washington aumentaria o cerco dentro da Europa e Moscou iria garantir uma rede de segurança no espaço pós-soviético, apostando em mais integração econômica com a China e em um conflito congelado no leste europeu. Aparentemente, esta guerra tem duas dimensões simultâneas. Uma, europeia, é isolar a fronteira ocidental russa e criar a possibilidade da OTAN chegar ao Cáucaso, por todos os meios necessários.
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Outra, do lado russo, além de retomar a influência estratégica no espaço pós-soviético (através da Ucrânia desmilitarizada) e um empate no Báltico, é estreitar a aliança com Beijing. Para tanto, o Kremlin admite que a interdependência econômica para com a China não ira virar a hegemonia do mundo caso não seja acompanhada de uma versão armada da mesma.
De sua parte, o “ocidente” aposta na escalada desta forma de guerra fria ampliada. Se não há condição de chocar de frente com a economia mais dinâmica do mundo – a chinesa – é preciso bater no aliado estratégico, criando situações de longo prazo onde toda a arquitetura financeira da Rússia terá de ser baseada no sistema chinês de compensações. O que era um ensaio de “nova arquitetura financeira mundial”, com os BRICS e o novo eixo de expansão capitalista, se tornou uma realidade (acelerada) em escala eurasiática.
Na projeção de poder do Partido Democrata na Ásia, o governo Obama tentou avançar com o TPP (Tratado Transpacífico) e obteve como resposta a expansão do Banco Asiático de Infraestrutura e Investimentos (AIIB). O padrão de Bretton Woods estava sendo abalado antes do conflito Russo-Ucraniano e agora pode desmoronar.
O AIIB tem os seguintes números: “O AIIB iniciou suas operações em 2016 com 57 membros fundadores (37 regionais e 20 não regionais). Até o final de 2020, tínhamos 103 membros aprovados, representando aproximadamente 79% da população global e 65% do PIB global.”
O eixo dinâmico dessa economia é a China, cada vez mais próxima de ser aliada estratégica da Rússia, realizando a aproximação que faltou na Guerra Fria do século XX para tentar realmente vencer o conflito globalizado. Para os poderes ocidentais, frear a Rússia é atingir a China, retrocedendo à década de 1950 em termos de presença geopolítica na Ásia, avançando uma casa no conflito mundial, de interdependência econômica para armada.
Já Beijing vê seus tempos acelerados pelo aliado europeu, reforçando seus laços no continente asiático e no mundo islâmico, fazendo valer a presença econômica e empresarial como forma de assegurar seus interesses.
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