A escolha do Telegram

Desde sexta-feira (18), quando o ministro  do Supremo Tribunal Federal,Alexandre de Morais, determinou a suspensão do Telegram por descumprimento de decisão judicial, a posição entre os setores que historicamente defendem a liberdade de expressão não foi unanimidade.

Há que se reconhecer a ousadia do ministro que mandou às favas os desaforos de uma plataforma com meio bilhão de usuários no mundo e cerca de 49 milhões no Brasil, com potencial de reunir, contra sua decisão, os detratores do STF, a começar pelo presidente da República, e os mais zelosos críticos da censura que assombra a democracia. Talvez apoiado nisso o Telegram escolheu não se incomodar.

Pesaram contra a suspensão argumentos  técnicos e bons receios do que significa abrir tamanho precedente. A medida foi considerada abrangente demais, punindo o todo pela parte, interrompendo serviços e contatos entre usuários e ainda sentenciando com multas pesadas eventuais dribladores da sentença – algo trivial para pequenas VPN que tenham o aplicativo instalado. E o grande receio dos críticos que o STF  banalize as suspensões judiciais para resolver problemas com a internet.

A favor do ministro estão os danos conhecidos das campanhas de fake news ao Brasil.  De fato, nunca saberemos como estaria o país sem o ódio e fanatismo inoculados na política desde o impeachment, ainda mais lembrando a responsabilidade e participação direta do judiciário nos acontecimentos desde então.

Também conta  a favor do bloqueio o desdém com que o Telegram ignorou as decisões judiciais, escondido nos Emirados Árabes. As cartas e intimações remetidas para lá pelo Tribunal retornaram sem entrega, ou seja bateram em um endereço funcionalmente fake, não importam as histórias que o Telegram veio a contar depois.  A princípio, a empresa se negou a estabelecer procuração no Brasil para que a Justiça pudesse notificá-la e responsabilizá-la por eventuais ações irregulares em território nacional.

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No começo eram três perfis ligados a blogueiros bolsonaristas que deveriam ser bloqueados e o foram, mas não antes que os responsáveis pudessem migrar suas atividades e conteúdos para outras contas na mesma plataforma.  Cansada, a Polícia Federal pediu ao Supremo cuidar do caso. E ele caiu nas mãos do ministro que cuida da investigação das milícias digitais.

O Telegram tem um marketing valioso no mundo das comunicações invadidas: uma criptografia eficaz, anonimato e compromisso de não violá-la, escapando de Estados censores. A vantagem competitiva também atraiu negócios criminosos que geralmente se escondem na deep web. A outra vantagem oferecida é a criação de grupos de tamanho  ilimitado, com o que consegue burlar as limitações brasileiras, especialmente nas eleições.

“Com meio bilhão de usuários ativos e crescimento acelerado, o Telegram se tornou o maior refúgio para quem busca uma plataforma de comunicação comprometida com a privacidade e a segurança. Levamos essa responsabilidade muito a sério. Não vamos decepcionar vocês”, declarou o dono da empresa, Durov, no ínicio de 2021. Ele também passou a investir em pacotes premium para clientes corporativos e outros dispostos a pagar “As pessoas não querem mais trocar sua privacidade por serviços gratuitos. Eles não querem mais ser reféns de monopólios de tecnologia que parecem pensar que podem se safar de qualquer coisa, desde que seus aplicativos tenham uma massa crítica de usuários.”  E a plataforma alcançou essa massa crítica. Em dezembro passado, quando um levantamento da empresa Ann o colocou entre as maiores redes de mensagens de big techs, ele comemorou dizendo que 2021 ficou marcado como “o ano em que as pessoas cansaram de ser desrespeitadas por corporações gananciosas e escolheram a privacidade e a consistência do Telegram”.

Suspender a rede no Brasil poderia não chegar a inibir as fake news que com certeza estão sendo preparadas para as próximas eleições porque, como água que escapa pelas frestas, as milícias barradas encontram outros caminhos para se propagar.  Mas ficou claro que as penalidades definidas por Alexandre de Morais acertaram em cheio os temores do Telegram. A empresa que, segundo o Elwatan.News, que festejou sua chegada aos Emirados, esperava chegar a um bilhão de usuários até o fim de 2022,  foi notícia que correu o mundo, do New York Times ao Arab News, ganhou manchete na Fortune, circulou na Reuters e na AFP, mas sempre com a luzinha amarela da acusação tolerância com ilicitudes em larga escala.

 

O aplicativo de mensagens instantâneas foi fundado em 2013 pelos irmãos Nikolai e Pavel Durov, antes criadores rede social russa, chamada Vkontakte. O Telegram  foi registrado como um empresa independente em Berlim para venda de um aplicativo de mensagens seguras. Na caminhada, enfrentou punições temporárias ou bloqueios no Irã, Bielorrússia, China, Paquistão e Rússia, entre outros, mas continuou conquistando mercados, até instalar-se em Dubai Internet City, um dos 10 principais aplicativos de comunicação mais baixados globalmente nas plataformas Android e iOS, incluindo tablets e dispositivos que não suportam a rede Wi-Fi.  Valia US$ 20 bilhões em fevereiro de 2021  Isso sem contar fornece APIs para desenvolvedores independentes que criam software Telegram não oficiais para sistemas operacionais Windows, Mac e Linux.

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Executando as mesmas funções que programas como o Whatsapp, a plataforma cresceu no Brasil depois de problemas que afetaram justamente a confiança no Whatsapp. O bloqueio de perfis de políticos como o de Donald Trump, nos Estados Unidos, por outras redes sociais  alargaram a janela de oportunidade para o Telegram que prometia maior liberdade de expressão. No mundo, foi o aplicativo para celular que mais recebeu novos usuários em 2021.

A última análise da empresa de dados sobre mobilidade App Annie, informada ao jornal Valor em janeiro de 2022,  contabilizava 41,9 milhões de usuários ativos mensais no Telegram Brasil, 1 milhão a mais do que em setembro de 2021.

A perda de um mercado desses pode gerar protestos de usuários contra a Justiça censora, mas o pior para a rede é mexer em sua imagem e a credibilidade junto aos investidores. Nos Emirados, o Telegram é uma aposta bem sucedida. Há um ano, as empresas Mubadala Investment Company e a Abu Dhabi Catalyst Partners anunciaram o investimento de US$ 150 milhões no aplicativo.

Na ocasião, o fundador da rede, Pavel Durov, disse a repórteres que pretendia continuar o crescimento na região do Oriente Médio e Norte da África e também no mercado global. Na época, o diretor de operações da Abu Dhabi Catalyst Partners, James Munce, previa um aumento de 500 milhões de usuários ativos mensais.

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No sábado (19), Pavel Durov finalmente respondeu ao juiz e pediu desculpas pela carta devolvida dos Emirados. Alegou inclusive tê-la perdido em meio à grande quantidade de correspondência que a plataforma recebe naquele endereço.. Ganhou manchetes engraçadas como a do The Verge: “Telegram esquece de checar seus emails e agora está banido do Brasil”. Até a cartas sobre a Ucrânia foram citadas como desculpa para o descarte da correspondência  brasileira. O Telegram tem sido de fato o aplicativo mais usado pelos ucranianos para enfrentar ou escapar da guerra. Mas as tentativas de contato do STF eram também bem conhecidas da plataforma. Ao receber o pedido de desculpas, o ministro deu a Durov 24 horas para cumprir as decisões judiciais e especialmente indicar um representante oficial no Brasil e excluir o canal oficial do presidente da República em que foram divulgados ilegalmente documentos de um inquérito sigiloso.

No domingo, finalmente o Telegram cedeu. Escolheu colaborar com a Justiça brasileira. Nomeou seu procurador e prometeu  monitorar diariamente os 100 canais mais populares do Brasil e passar a fazer verificação de notícias.

É possível que a decisão de Alexandre de Moraes tenha ido um pouco além da prudência ao mandar bloquear toda a plataforma e seus usuários, milhões dos quais não tinham porque pagar o preço dos abusos alheios. Mas entre todos possíveis afetados com o banimento, o Telegram com planos globais avanando sobre a clientela das big techs teria muito a perder com a imagem associada à infestação de milícias digitais que tiram o sono de boa parte do Brasil. Não é difícil prever a velocidade com que os mesmos problemas se reproduzirão na própria rede. Mas o Telegram, desta vez, escolheu obedecer o juiz.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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