Crise e “desdolarização” da economia mundial, superando a hegemonia dos petrodólares

Na quinta 24 de março o presidente estadunidense Joe Biden estava em Bruxelas, para a reunião extraordinária da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Embora o engajamento direto da Aliança Atlântica na guerra Russo-Ucraniana seja uma opção descartada – pelo risco real de um conflito nuclear na Europa – a pressão contra a Rússia implica em um cerco geoeconômico e a consequente manobra de “desdolarização” através  dos países atingidos.

No dia 16 de março o ex-vice de Barack Hussein Obama aumentou a tensão mundial ao declarar que considerava seu par russo, Vladimir Putin, como um “criminoso de guerra”.  Da guerra para a retórica, voltando aos conflitos e a escalada das sanções. Quando a situação está frágil, o imponderável pode ser prevalente. Na quarta 23 de março a probabilidade de crise na economia mundial aumenta. Dessa vez não foi diretamente fruto da guerra, mas a emergência climática.

As exportações de petróleo através do Caspian Pipeline Consortium (CPC) podem cair cerca de um milhão de barris por dia (bpd) enquanto conserta dois dos três pontos de atracação danificados por uma tempestade na parte russa do Mar Negro. O CPC é um dos maiores oleodutos do mundo que transporta petróleo bruto do Cazaquistão para os mercados globais. Ao contrário do petróleo produzido na Rússia, o óleo cru saído do país cazaque não é alvo de sanções, mesmo sendo suas operações consorciadas com empresas russas. Não existem oleodutos ou gasodutos no subsolo do Mar Cáspio, mas sim uma linha contínua de navios (a maioria de bandeira russa), saindo da costa do Cazaquistão e desembarcando nas instalações portuárias de Novorossiisk.

O oleoduto CPC transporta cerca de 1,2 milhão de barris por dia do principal tipo de petróleo bruto do Cazaquistão, a mistura cáspia leve e azeda. O volume responde por 1,2% da demanda global e o conserto das instalações pode demorar de 45 a 60 dias, em função da falta de equipamentos e peças de alta precisão. O problema na cadeia de suprimentos, esse sim, é fruto direto das sanções decretadas pelos EUA e União Europeia (EU) contra a Rússia.

A resposta russa e as alternativas para a desdolarização

A Rússia afirmou que vai seguir os contratos assinados, mas exigir que as empresas do setor recebam o pagamento em rubros, e não mais em moedas de países não amigos. Isso implica em responder às sanções e o congelamento de bens e contas externas de oligarcas, corporações e estatais russas aumentando a autarquia armada. O peso na moeda governada pelo Kremlin vai de encontro ao uso do dólar e do euro como forma de manter os contratos em pé. O presidente da Federação Russa afirmou que, após esta decisão, a cotação do dólar em relação ao euro baixou de 1 USD para 100 rublos e, ao mesmo tempo, a cotação do gás natural subiu para 1.350 USD por mil metros cúbicos.

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Já a Índia está negociando o petróleo russo em renminbi e não mais em dólar.  Isso é um fator a mais da chamada “desdolarização”, indo ao encontro das câmaras de compensação e comércio direto já existentes entre importantes países como Rússia, Cazaquistão, China e Irã. Com a entrada dos gigantes do Sul da Ásia, como o Hindustão e o Paquistão, definitivamente o eixo da economia muda de fato.

O maior supridor de petróleo da China é a Arábia Saudita. Por isso e a disputa direta com a Rússia, a administração Joe Biden não vai conseguir forçar a monarquia saudita a aumentar a produção da Saudi Aramco retomando o movimento de dumping como o realizado no início da década de 1980  contra os preços russos, então ainda como União Soviética.

Outro exemplo é ainda mais delicado. Os Emirados Árabes Unidos (EAU), um aliado estratégico da entidade sionista, está fazendo pose de rebeldia também, não aceitando a condição única do dólar como reserva mundial e meio de pagamento do comércio internacional. A pressão contra o dólar pode desmontar, em um prazo menor do que fora planejado por Beijing, a hegemonia da moeda estadunidense e o binômio petrodólar.

O panorama da “desdolarização” ultrapassa o cenário com as monarquias árabes do Golfo. A Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEC na sigla em inglês) corresponde a treze 13 Estados (mesmo quando na condição de Estados Falidos) que possuem coletivamente cerca de 80% das reservas comprovadas de petróleo bruto do mundo. Já as maiores reservas entre os países que não são membros da Organização incluem a Rússia e os EUA.

Os países membros da Opep são Arábia Saudita, Argélia, Angola, Emirados Árabes Unidos, Congo, Guiné Equatorial, Gabão, Irã, Iraque, Kuwait, Líbia, Nigéria e Venezuela, produzem cerca de 40 por cento do petróleo bruto do mundo, representam cerca de 60 por cento do total de petróleo comercializado internacionalmente. Em um simples exercício de raciocínio lógico, podemos imaginar que a senhoriagem do dólar assusta de forma parcial ou majoritária os tomadores de decisão e as instituições centrais desses países acima listados.

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Se os EUA fizeram um “corredor sanitário” contra os capitais russos e bloqueiam o uso do Swift (como já haviam feito com o Irã e seguem sancionando), portanto, a economia mundo é centrada nos poderes de veto de Washington e o controle sobre o sistema mundial de compensações e comunicação interbancárias. Logo, é fundamental buscar alternativas para os destinos imediatos de suas cadeias de valor mais importantes – petróleo e derivados -, mesmo quando se trata de países vassalos da projeção de poder vinda do sionismo e da anglo esfera, como é o caso de sauditas e emirados.

O Grande Jogo na Ásia está decidido com a derrota dos EUA

A crise não se resume ao petróleo, mas ao conjunto de commodities cuja formação de preços é atacada pelos especuladores em escala global. A Ucrânia, por exemplo, responde a mais de 25% do fornecimento de trigo em escala mundo e o mais importante produtor único de óleo de girassol para a União Europeia. Na mesma commodity, a Rússia é a maior exportadora mundial do grão que o colonialismo eurocêntrico padronizou no ocidente ampliado como base alimentar. Exemplos como esse vão abundar nos próximos meses e curtíssimo prazo (de agora a dois anos). O cerco geoeconômico contra o Kremlin pode afetar o comércio mundial em uma escala realmente nunca antes vista, não ao menos desde o final da última Bipolaridade.

Corretamente, o diplomata italiano Marcos Carnelos, com longa experiência no Mundo Árabe e países de maioria islâmica, observa a robusta arquitetura econômica e financeira centrada na China e com a Rússia como aliada geoeconômica estratégica. Vejamos:

A União Econômica da Eurásia (EAEU), a Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI), o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB) e a Parceria Econômica Regional Abrangente da Ásia (RCEP) – e a dobradiça que a Organização de Cooperação de Shangai (SCO) fornece a todos esses projetos multilaterais – representam um forte padrão para a consolidação da Eurásia continental pela primeira vez na história.

O cerco geoeconômico contra a Rússia mira também na projeção hegemônica da China, um fenômeno já concreto e realizado. A resposta concreta é acelerar a “desdolarização” abrindo mais espaço para as transações entre mais de 70% da humanidade que se encontra fora da centralidade anglo-saxã, sionista e eurocêntrica.

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