No dia 6 de abril de 2018, durante os protestos da Grande Marcha de Retorno à Gaza, o jornalista Adham al Hajjar foi baleado por uma munição de uso proibido (mesmo em condições de guerra), mas que pode ser adquirida por até 3 dólares. Naquele dia, Adham usava capacete e colete a prova de balas com as inscrições “PRESS”.
Adham continua aguardando autorização do Governo israelense para poder sair de Gaza em busca de um tratamento que traga de volta a funcionalidade de sua perna e amenize suas dores. Nesta entrevista ao Monitor do Oriente Médio, Adham recorda o dia do ataque e diz que a única coisa que ele tem feito nesses quatro anos é “ter calma e esperar”. A entrevista foi traduzida por Jehad Afaghani
Como foi o dia do ataque?
Assim que cheguei onde estavam os manifestantes, vi um deficiente palestino agarrando o portão de um checkpoint como se quisesse arrancá-lo com as próprias mãos. Antes de tirar a máquina da bolsa, caí no chão. A dor e o impacto foram tão fortes que pensei que tinha perdido a perna. A bala entrou entre os ossos e rompeu todos os tendões e a musculatura. Desmaiei de dor, só acordei na ambulância, a todo momento eu perguntava aos paramédicos onde estava minha perna, perguntava se eles pegaram a minha perna, ficava pensando o que seria da minha vida, da minha profissão?
Adham foi ferido por um tiro de munição real. Não é possível identificar qual a munição foi disparada, ou por qual arma, entretanto, os Médicos Sem Fronteiras (MSF) afirmaram que muitas das feridas tratadas pela organização, possuíam as mesmas características, em alguns casos a ferida de saída do projétil era do tamanho de um punho. Marie-Elisabeth Ingres, chefe de missão do MSF na Palestina disse que “metade dos mais de 500 pacientes que admitimos em nossas clínicas têm ferimentos em que a bala literalmente destruiu o tecido após pulverizar o osso.”
Patologistas forenses avaliaram fotos dos ferimentos causados em 2018 na Faixa de Gaza. A equipe relatou que muitos dos casos apresentam características de ferimentos por bala expansiva, mais conhecidas como “ponta oca”. O design dessa munição permite que a bala alcance maior velocidade em uma distância relativamente longa além de possuir grande “poder de
parada”, o que causa maior destruição ao alvo e altos índices de letalidade.
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Durante a Primeira Guerra Mundial, a Alemanha denunciou o uso de munição expansiva por parte dos britânicos, afirmando que tal munição causava ferimentos desumanos e devastadores. Na Primeira Conferência de Paz de Haia, em 1899, as munições que expandem ou achatam no corpo tiveram seu uso estritamente proibido em casos de guerra.
O governo israelense negou a acusação de uso de balas expansivas, alegando que sua munição padrão é “Full Metal Jacket” e que o exército foi obrigado a abrir fogo contra os palestinos como último recurso, agindo conforme os Procedimentos Operacionais Padrão.
O uso de balas expansivas, explica o alto índice de ferimentos graves, amputações e morte, como a do jornalista Yaser Mutarja, morto dias antes. Mutarja usava capacete e colete a
prova de balas com a inscrição “PRESS”, e mesmo assim a bala atravessou o colete dilacerado seus órgãos internos.
A que distância da Linha Verde você estava quando foi baleado?
Eu sou jornalista, eu tinha o direito de estar lá e trabalhar. Todo jornalista está protegido por leis internacionais. A distância não importa, tanto nós jornalistas como os paramédicos que estavam lá e também foram baleados, estávamos trabalhando quando fomos atingidos. Quem impõe a fronteira na Palestina são os israelenses. Israel sempre arruma desculpa para
justificar o porquê atira em jornalistas e paramédicos.
Aquela semana foi uma das mais sangrentas desde que começaram os protestos da Grande Marcha de Retorno, só naquele dia mais de três mil pessoas ficaram feridas, o hospital para o qual Adham foi levado estava lotado, assim como todos os outros em Gaza.
Como foi seu atendimento em Gaza?
Quando cheguei no hospital, os médicos limparam a minha perna e me colocaram em uma maca, eles disseram que não poderiam fazer nada, eu teria que aguardar uma equipe de médicos franceses que estavam para chegar, só eles poderiam me operar.
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Quanto tempo você esperou até a chegada da equipe francesa?
Desde que fui baleado até a chegada da equipe francesa foram três dias, deitado em um colchonete em cima de uma maca. Foram três dias sentindo muita dor.
Como foi a cirurgia e o tratamento?
A cirurgia durou oito horas, os médicos cortaram algumas partes e juntaram outras, mas no fim, a cirurgia acabou não sendo bem sucedida. Fiquei três meses no hospital com a perna imobilizada em “V” para poder colar. Os médicos me disseram que não poderiam me ajudar, e era muito difícil conseguir tudo que precisava para o meu tratamento em Gaza. Depois de três meses naquela posição, recebi uma visita de outra organização humanitária. Eles disseram que minha perna não poderia ficar daquele jeito e que em Gaza não tinham os recursos para me tratar. Os médicos optaram por um tratamento alternativo.
Então, eles amarraram meu tronco na maca, e com um peso começaram a esticar minha perna lentamente, doía muito e isso durou um mês e meio.
Uma ONG internacional conseguiu uma nova cirurgia para Adham no Egito, no entanto, seu tratamento deveria ser acompanhado posteriormente na Alemanha. No Cairo o jornalista passou por uma cirurgia de enxerto ósseo, a ONG financiadora arcou com os custos hospitalares, enquanto o jornalista e sua família custeavam as despesas pessoais. Adham passou um ano e seis meses procurando ajuda financeira, já que a embaixada da Alemanha no Egito lhe disse que só concederia o visto se o jornalista conseguisse comprovar que tinha o dinheiro para sua estadia na Europa. Como não conseguiu o dinheiro, o visto para a Alemanha foi negado e ele voltou para Gaza. A Autoridade Palestina junto ao Sindicato de Jornalistas, conseguiu que Adham fizesse um tratamento na Jordânia, a essa altura ele começou a sentir sua perna paralisada, a cirurgia no Cairo resultou em uma laceração óssea, deixando ainda pior a situação de sua perna.
Enquanto estava no Egito e na Jordânia em algum momento você pensou em não voltar para Gaza?
Nunca, jamais. A minha vida é Gaza. A minha vida é pegar meu copo de café e sentar para ver o mar, este é o único momento que esqueço um pouco a dor. O tempo que passei fora, eu me sentia como uma experiência médica, cheguei até a brigar com os médicos, eu disse várias vezes “se vocês não podem me ajudar então me mandem de volta para casa.”
Em Gaza, Adham encontrou com um jornalista britânico do The Times que esteve com ele naquele 6 de abril. O britânico perguntou como poderia um jornalista palestino ter sido agredido enquanto os estrangeiros saíram ilesos. Adham respondeu: “você tem um governo que protege os seus direitos como ser humano e como profissional de imprensa, enquanto nós não podemos nem ao menos ter um governo para proteger nossos direitos mais básicos.”
Durante as manifestações daquele ano, Israel matou 189 palestino (somente referente aos protestos em Gaza), 70 morreram com tiros na cabeça. Mais de 23 mil pessoas foram feridas, 6106 por munição real, delas 940 crianças. A comissão da ONU que investigou os acontecimentos, concluiu no ano seguinte que os soldados cometeram crimes de lesa humanidade contra pessoas que não ofereciam riscos reais aos soldados isra elenses.
Do lado israelense, de março à dezembro de 2018, quatro soldados ficaram feridos durante os protestos da Grande Marcha do Retorno e não houve mortos.
“Os soldados israelenses cometeram violações do direito internacional humanitário e dos direitos humanos. Algumas dessas violações podem constituir crimes de guerra ou crimes contra a humanidade e devem ser imediatamente investigadas por Israel. ” Santiago Canton, presidente da comissão da ONU.
Adham não é um número em um relatório internacional, ele é uma pessoa. O Governo Sionista não violou um, e sim vários de seus Direito Humanos, e continua violando toda vez que o nega direito à saúde.
“Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade.” Artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.