O Fórum Social Mundial encerrou sua última edição no dia 6 de maio, na Cidade do Mèxico com a denúncia de mais dois casos de silenciamento de vozes palestinas que deveriam ser ouvidas no evento que tem como slogan a afirmação de que outro mundo é possível. “ Autoridades israelenses e norte-americanas proibiram nossos representantes de comparecer e participar”, denunciou Yousef Habash, da associação Philistia, ao lado de outros integrantes da delegação palestina à assembleia final do fórum.
Ficaram pelo caminho o advogado Sahar Francis, diretor da organização Addameer, associação de defesa dos direitos dos palestinos presos por Israel, que foi impedido de embarcar em um avião para os Estados Unidos, e Ubai Aboudi, diretor do Centro Bisan de Pesquisa e Desenvolvimento, detido na fronteira israelense-jordaniana. Essas e outras organizações de direitos humanos foram classificadas como terroristas por Israel, passando a sofrer restrições desse tipo – especialmente porque são sempre chamadas a falar nos eventos internacionais.
Delegação palestina se reúne e entoa canção durante marcha no Fórum Social Mundial que pode ser vista passando ao fundo, em 1º de maio de 2022, na Cidade do México [União das Mulheres Palestinas]
A criminalização como arma de silenciamento é uma situação que se repete nas edições do FSM, processo de mobilização da sociedade civil lançado em 2001 em Porto Alegre, contrapondo-se ao Fórum Econômico neoliberal de Davos, e discutindo caminhos alternativos para a humanidade. Em 2005, um importante debate estava programado sobre as lutas internacionais por direitos, no qual participaria o diretor da organização Stop the Wall, Jamal Juma..Sua presença precisou ser substituída por uma mensagem de vídeo do dirigente visivelmente exausto das horas forçadas sem dormir. Dias antes de embarcar, ele fora preso, sem justificativa, e solto apenas na véspera de sua participação no FSM, quando já não alcançaria mais viajar.
Em 2012 um fórum temático e inteiramente dedicado ao compromisso com uma Palestina Livre foi organizado em Porto Alegre, a mesma cidade onde o FSM nasceu. Aqueles dias de mobilização intensa e esperança coincidiram com uma decisão da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), tomada em 29 de novembro, de modificar o status dos territórios palestinos, de “entidade observadora” para “Estado observador não-membro” reconhecendo praticamente a existência do Estado Palestino. Embora polêmico, por não mudar a realidade de um Estado “observador” ocupado, sem direito à própria terra ou de retorno para a sua enorme população expulsa desde a Nakba, o fato sugeria um atenção da comunidade internacional para a situação da Palestina. Os anos confirmaram no entanto que as sucessivas declarações da ONU apenas apaziguaram e cristalizaram uma contínua situação de paralisia e cumplicidade com o avanço da ocupação.
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A ocupação da Palestina aparece nos encontros internacionais do FSM como uma grande pedra no caminho de quem quer sonhe por um mundo melhor, e precisa ser removida até para que o sonho seja possível. A situação de apartheid, fartamente documentada em denunciada por organizações reconhecidas mundialmente, como Anistia Internacional e Human Rights Watch, desafia um mundo que se diz dedicado a superar os horrores coloniais – dentro de uma década dedicada pela ONU a essa tarefa. Mas o que acontece na Palestina ainda não conta para medidas práticas de sanções a Israel.
“ Não podemos esperar erradicar o colonialismo e tratar de seus legados, enquanto permitirmos que uma exceção à proibição do colonialismo seja mantida no século 21 às custas do povo palestino e a contínua negação de seu direito à autodeterminação”, advertiu a delegação palestina na assembleia final do FSM 2022, lembrando que solidariedade tem sido uma tarefa persistente do FSM..
Em 2014, mais um ataque devastador de Israel sobre Gaza mobilizou instâncias e organizações do Fórum Social Mundial. Imagens do morticínio deliberado, corpos de bebês empilhados, transformaram a internet em uma exibição dos horrores da ocupação. Os algoritmos do Facebook, até aquele momento, não davam conta de esconder as denúncias e imagens dos crimes cometidos contra palestinos. A pedido da organização de jornalistas e comunicadores(as) Ciranda e da Frente em Defesa do Povo Palestino do Brasil, as entidades do Conselho Internacional reunidas na cidade de Monastir, na Tunísia, assinaram embaixo da convocatória para uma Missão Humanitária à Gaza. Ela foi organizada e iniciada a partir do FSM de 2015 realizado em Tunis. De lá, cerca de 15 integrantes da ação, a maioria jornalistas, partiram para a Jordânia e de lá para a Palestina. Desses, duas pessoas de sobrenomes árabes foram barradas por Israel: Soraya Misleh, brasileira de origem palestina, e Mohamad El Kadri, de origem libanesa, por razões inexplicadas de segurança israelense. A missão permaneceu na Cisjordânia, colhendo testemunhos e depoimentos divulgadas no FSM, midias livres e mídia pública do Brasil, mas também foi impedida de entrar em Gaza e documentar a situação da faixa praticamente destruída pelos bombardeios.
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Novos ataques ocorreram desde então, como os registrados em maio de 2021, que incluíram a derrubada de um edifício de escritórios da imprensa. “As autoridades israelenses visam nosso trabalho porque têm medo das realidades que expomos. Eles têm medo das verdades que nossas investigações revelam“, disse Yousef Habahs, que foi também um dos organizadores do segundo Fórum Mundial Palestina Livre, ocorrido dentro do FSM 2022.
O mesmo foi relatado pelas integrantes da União de Mulheres Palestinas, Muna Munara, da Cisjordânia, e Rita Natsheh, de Jerusalém, que estiveram no México e participaram de live com o jornalista Ahmad Jaradah, falando diretamente de Hebron, sobre o papel e as narrativas da mídia sobre a ocupação palestina, em atividade organizada pelo Monitor do Oriente Médio e mediada por Soraya Misleh e Bruno Beaklini, articulistas falando a partir do Brasil.
As denúncias à assembleia final do FSM, em 5 de maio. No dia seguinte, as palestinas comemoravam a libertação de uma integrante da União de Mulheres, Khitam Saafeen, depois de 19 meses presa sem acusação. E apenas cinco dias depois, sofreriam o impacto, de volta à Palestina, do assassinato da jornalista palestina Shireen Abu Akleh, da rede Al Jazeera, conhecida por suas coberturas da ocupação israelense. O crime e a violência inclusive durante seu funeral explicitam o que elas foram denunciar no FSM sobre o modo com a ocupação israelense atua para se manter.
Além de Addameer (palavra em árabe para “consciência”) e o Centro Bisan para Pesquisa e Desenvolvimento, Israel também declarou, alguns meses antes do FSM, outras quatro organizações da sociedade civil palestina – incluindo as que participavam ou participariam do FSM – como organizações “terroristas”, usando uma lei de 2016 aplicada contra organizações da área dos direitos humanos. Foram atingidas as entidades al-Haq (palavra para “justiça”, Defesa das Crianças da Palestina (DCI), União dos Comitês de Trabalho Agrícola, e Comitê da União das Mulheres Palestinas.
A causa palestina há muito tornou-se uma causa internacional. A delegação no FSM denunciou que o uso do spyware israelense Pegasus para rastrear jornalistas, ativistas da sociedade civil e dissidentes em países da América Latina e do Sul Global é feito antes contra palestinos e exportado a outros governos repressivos. “A repressão de Israel encoraja – e arma – a repressão em todo o mundo.”
Conviver com o apartheid a aceitar que o apartheid tenha direito de defesa significa que os passos para uma outra sociedade global, com respeito à autodeterminação dos povos, ainda estão por serem dados. Isso demonstra o quanto a causa palestina tem sido emblemática para o FSM. Não é a única. Na edição 2022 também estavam os sarauis denunciando a ocupação marroquina, a colonização, e cobrando o direito à autodeterminação. O caso palestino foi exposto como um microcosmo das muitas injustiças globais enfrentadas pelos povos do mundo, produzidas pelo imperialismo neoliberal, o capitalismo explorador, com uso de corporações transnacionais e as práticas coloniais.
As delegações pediram ações concretas de solidariedade, não só por palavras, mas de fato voltadas a desmantelar a ocupação e responsabilizar Israel por seus crimes, como um desafio comum internacional. E de fato, não há como sustentar a utopia de que um mundo melhor esteja em construção se uma situação inequívoca de apartheid, sustentada pela cumplicidade mundial, não for enfrentada e retirada do caminho.
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