Sessenta anos após Nelson Mandela – ícone da luta sul-africana contra o regime de apartheid – receber treinamento de guerrilha na Etiópia, um ex-agente militar que agiu como seu segurança confirmou planos para tentar matá-lo na ocasião.
Na véspera do Dia Internacional de Nelson Mandela – celebrado anualmente em 18 de julho – o capitão Guta Dinka, de 89 anos, recordou à agência de notícias Anadolu como conseguiu impedir uma conspiração para executá-lo. Dinka era um dos quatro paraquedistas que serviram como guarda-costas na comitiva de Mandela em território etíope.
“Um velho amigo do exército que atendia pelo nome de Abraham me apresentou a um homem branco e um rapaz africano que queriam que eu matasse Mandela”, relatou Dinka. Eles me deram duas mil libras e uma câmera para tirar fotos de Mandela. Depois que eu o matasse, me prometeram uma vida confortável na Inglaterra”.
O soldado então informou o general Tadesse Birru sobre o complô e lhe entregou o dinheiro e a câmera. Birru era comandante-chefe do campo de treinamento.
“O plano foi frustrado com a prisão de Abraham”, observou Dinka. “O branco e o africano foram imediatamente deportados ao Quênia”.
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A Etiópia – país empobrecido na região conhecida como Chifre da África – orgulha-se de abrigar e ajudar Mandela durante sua luta de resistência contra o colonialismo que assolava o continente africano.
Ao recordar seus dias com Mandela, o capitão Dinka confirmou que o objetivo da missão e a identidade do cidadão escoltado permaneceram em segredo por um longo período. “Estávamos satisfeitos em receber aquele soldado em treinamento, descrito como convidado especial do imperador Haile Selassie”, observou Dinka.
Mandela – considerado em todo mundo como herói da luta contra o apartheid e da resistência anticolonial africana – serviu como primeiro presidente negro da África do Sul entre 1994 e 1999. Mandela faleceu em 5 de dezembro de 2013, aos 95 anos. Em 2009, a Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) designou o dia de seu aniversário – 18 de julho – como data comemorativa em sua homenagem.
A vida de Mandela como combatente da liberdade teve início na Etiópia em 1962.
Treinamento de alto escalão
O jovem sul-africano adotou o nome de David Motsamayi em seu passaporte etíope e passou a estudar guerrilha no campo de treinamento da Polícia de Kolfe, na cidade de Addis Ababa, capital da Etiópia. O general Birru foi incumbido pelo governo de comandar o curso, ao lado de três comandantes experientes, especialistas em esforços de guerrilha e gestão de batalha.
“Mandela recebeu treinamento sete dias por semana, que ocorria, às vezes, na calada da noite, para aprender táticas de liderança e esforços de guerrilha”, declarou Dinka, ao confirmar exercícios com uso de explosivos, minas e rifles de guerra.
O inspetor Tilahun Bizuwork – chefe de relações exteriores do Colégio Universitário da Polícia da Etiópia, alma mater de Mandela – destacou à agência de notícias Anadolu a intensidade e profissionalismo do treinamento de Mandela, a despeito da curta duração.
“Nos orgulhamos de ter recebido, treinado e transformado Mandela em um soldado e líder completo do exército de resistência”, observou Bizuwork.
O treinamento estava planejado para demorar seis meses, mas foi abreviado na metade devido a uma ordem da liderança do Congresso Nacional Africano (CNA) – então movimento revolucionário, incumbido de comandar a luta armada contra o apartheid.
“Um jantar de despedida foi organizado por Birru”, recordou Bizuwork. “No fim do evento, o general entregou a Mandela uma pistola”. Ao fazê-lo, o comandante etíope disse ao combatente sul-africano que aquela arma representava a libertação e que fora enviada pelo imperador Selassie, que governou a nação africana de 1930 a 1974.
Dinka evocou o tom de lamento daquela despedida. “Estávamos quase chorando e vi os olhos marejados de Mandela em nosso caminho ao Aeroporto Internacional de Bole”.
Mandela entrou clandestinamente na África do Sul e deu início a sua longa jornada para derrotar o regime de apartheid.
Patrimônio histórico
O local de treinamento de Mandela é considerado um valioso patrimônio histórico, que comprova a contribuição etíope para a libertação da África do Sul.
“Dessa maneira, em janeiro último, o Colégio Federal da Polícia da Etiópia e o Departamento de Arte, Cultura e Museologia da Prefeitura Addis Ababa assinaram um acordo para construir juntos o Museu Mandela no terreno em que foi treinado”, acrescentou Bizawork. “Os trabalhos estão em curso”. Além disso, uma escola privada, o salão principal da Universidade de Addis Ababa e a sede da União Africana na capital etíope foram batizados em homenagem a Mandela. O terceiro andar do Hotel Ras – onde o ícone sul-africano se hospedou, durante sua passagem em solo etíope – também recebeu seu nome.
Dechasa Abebe – professor de estudos africanos da Universidade de Addis Ababa – afirmou que, desde o treinamento concedido a Mandela, o estado etíope buscou fomentar sua memória para reforçar o caráter nacional de enfrentamento histórico à colonização estrangeira. A Etiópia derrotou os avanços coloniais da Itália fascista em seu próprio solo, na primeira metade do século XX.
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“No decorrer das últimas seis décadas, os líderes etíopes reafirmam às audiências regionais e internacionais que a passagem de Mandela é uma contribuição notória de nosso país à libertação da África do Sul”, argumentou Abebe. “Líderes africanos e panafricanos enaltecem a Etiópia por treinar Mandela e por conceder apoio militar ao Zimbábue e outras nações da porção sul de nosso continente, durante suas respectivas lutas de resistência. Esses mesmos líderes sempre se mantêm ao lado da Etiópia em tempos difíceis”.
Abebe destacou o caráter icônico de Mandela, mas observou que diversas figuras panafricanas são subestimadas pela história oficial, a despeito de sua vasta contribuição para libertar o continente. “A África tem de trazer luz aos ícones esquecidos e difundir seu legado”, concluiu o professor e pesquisador etíope.
O período de Mandela na Etiópia deixou uma impressão duradoura. Em sua autobiografia –
Longa Caminhada até a Liberdade – escreveu o autor: “A Etiópia sempre teve um lugar reservado em minha imaginação. Senti que visitaria minhas origens, que descobriria as raízes do que me faz ser africano”.
Mandela voltou a visitar a Etiópia em julho de 1990, cinco meses após deixar a prisão.
Esta entrevista foi conduzida pela agência Anadolu.