De vez em quando, o mundo volta a se lembrar dos vertiginosos tormentos da população uigur. Há milhões de relatos.
Em maio, a rede britânica BBC divulgou uma reportagem aterradora com evidências de que até 1.2 milhão de muçulmanos uigures permanecem detidos pelas autoridades chinesas sob condições de maus tratos “não pelo que fizeram, mas por quem são”.
Um vasto catálogo de fotografias dos prisioneiros emergiu ao público, mostrando pessoas com lágrimas nos olhos, cabeças e barbas raspadas – uma imagem característica da “espíritos subjugados”. A revista The New Statesman descreveu a situação como possivelmente “o maior encarceramento em massa desde o Holocausto”
Com o coração devastado e a consciência pesada, Mehray Mezensof me relatou a realidade brutal que se projetou sobre ela e seu marido por intermédio do governo chinês.
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Nascida na Austrália, Mehray está casada a Mirzat Taher – de 31 anos – há seis anos. Contudo, metade deste tempo, ela passou sozinha. “Tivemos apenas 14 meses juntos”, destacou a esposa. “Mirzat foi detido arbitrariamente antes de completarmos um ano de matrimônio”.
Em 2016, Mehray voou a Urumqi – capital da província de Xinjiang – pela primeira vez. Três dias depois, casou-se com Mirzat. Mehray sorri ao recordar de quando conheceu o amor de sua vida, aos 22 anos de idade. “Tudo parecia um sonho. Nosso amor, nosso vínculo, nosso tempo juntos; tudo parecia perfeito. Estávamos felizes e realizados”.
O visto australiano de seu marido ficou pronto duas semanas antes do voo para Melbourne, em 12 de abril de 2017. O casal esperava morar na cidade e começar uma vida juntos.
O sonho, no entanto, durou muito pouco.
Na noite de 10 de abril, a residência de Mirzat foi invadida e seu passaporte foi apreendido por autoridades chinesas. Mirzat foi interrogado e mantido em um centro de detenção por dez meses, então transferido a um campo de concentração. Suas viagens à Turquia – onde trabalhava como guia turístico – incitaram suspeitas de atividades separatistas.
“Meu marido foi interrogado por meses e meses sobre o que exatamente fazia na Turquia, porque viajava para lá, com quem ficava, onde ficava. Investigavam cada detalhe. Naturalmente, não encontraram nada contra ele, porque ele não estava fazendo nada de errado”. Não obstante, apesar de absolvido de eventuais crimes, Mirzat permaneceu encarcerado e torturado por dois longos anos em “campos de reeducação”, onde muçulmanos uigures são forçados a mudar seus costumes culturais e religiosos, sob diretrizes das autoridades de Pequim, sob pretexto de combater o “terrorismo”.
Os uigures costumam aderir aos costumes islâmicos, incluindo as preces diárias, o jejum do Ramadã, a abstinência e o uso de vestes tradicionais. Devido a sua identidade religiosa, entretanto, sofrem perseguição há anos pelas autoridades chinesas.
Além da tortura psicológica nos “campos de reeducação”, Mirzat reportou – por meio de sua esposa – tratamentos desumanos, incluindo privação de sono, vigilância constante, confinamento a celas insalubres e punições arbitrárias, como retenção de suas refeições.
“Meu marido foi levado a dois centros distintos de reeducação, onde os prisioneiros são bombardeados por propaganda e lavagem cerebral. Eles são forçados a memorizar discursos e assistir vídeos de exaltação do Partido Comunista e do presidente [Xi Jinping]”, observou Mehray. “Os prisioneiros são forçados também a se arrepender expressamente. Conforme a razão pela qual foram capturados – como meu marido, somente por viajar ao exterior –, prisioneiros têm de preparar um discurso no qual prometem não deixar o país, ao alegar que a China é uma grande nação. Além disso, tudo tem de ser em chinês. São proibidos de se comunicar em seu primeiro idioma – o uigur –, mesmo entre si e sofrem punições severas caso descumpram essa regra. É particularmente difícil para os idosos, que não sabem nada do mandarim … Tudo que eu peço é misericórdia”.
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Sob veemente ameaça, os prisioneiros uigures são – dia após dia – coagidos a negar quem são e renunciar a tradições, idiomas e crenças de seu povo. O objetivo é que os presos deixem os “campos de reeducação” sem a sua identidade, sua cultura e sua nacionalidade – ou seja, como uma pessoa absolutamente distinta do que antes foram. É um processo denunciado por ativistas como método de apagamento da cultura da população uigur e outras minorias, para doutriná-los aos paradigmas adotados pelo governo chinês.
Apesar dos sucessivos testemunhos de tortura e maus tratos nas mãos das autoridades, Pequim insiste que violações de direitos humanos contra uigures mantidos nos “campos de reeducação” representam “a mentira mais absurda do último século, uma afronta ultrajante ao povo chinês e uma transgressão grosseira das normas básicas e legislaturas referentes às relações internacionais”.
Mirzat foi libertado em 22 de maio de 2019 – os procedimentos de escolha para que fosse solto foram absolutamente randômicos. Mirzat recebeu a informação de seus carcereiros de completara seus “estudos” e poderia retornar à sociedade e a uma “vida normal”. Porém, após dois anos de abusos, Mirzat estava longe do normal. Seu passaporte jamais foi devolvido.
“Estava traumatizado”, declarou Mehray. “Quando nos reencontramos, vi o quanto emagreceu e quão pálido estava; como o medo o abalou naquele período. Se recebêssemos um telefonema de um número privado ou houvesse batidas na nossa porta, Mirzat entrava em choque, congelava, porque pensava que viriam capturá-lo novamente. Em seguida, se escondia em algum canto da casa e me dizia para insistir às pessoas que ele estava ausente. Mirzat jamais teve coragem de pedir o retorno de seu passaporte e partiu meu coração vê-lo daquele jeito, tão diferente do que costumava ser. Mirzat era tão cheio de vida e de esperanças. Embora tivessem o libertado, sua mente jamais encontrou paz. Ele dizia que o levaram sem razão alguma e que poderiam fazê-lo novamente a qualquer momento”.
Mirzat estava certo.
Um ano depois, o marido de Mehray foi separado dela uma segunda vez, enquanto a esposa estava na Austrália para renovar seu visto. Mirzat foi submetido ao mesmo ciclo de interrogatório sobre sua estadia na Turquia. Dessa vez, foi solto em questão de três meses.
“Pensei que havíamos superado a pior coisa que poderia nos ocorrer, que nada poderia piorar”, afirmou Mehray. “Uma e outra vez, estávamos errados”. Em setembro de 2020, a polícia chinesa de Hami – cidade no leste de Xinjiang – prendeu Mirzat pela terceira e última vez, sob alegações de “organizar e liderar uma organização terrorista”.
Com lágrimas escorrendo por seu rosto, Mehray rememora aquela noite trágica em que recebeu as notícias de que seu marido fora sentenciado a 25 anos de prisão. “Eu não sabia que seria a última vez que poderíamos nos falar. Eu não esperava que fosse condenado a tanto tempo de prisão, sob acusações tão absurdas. Não é justo! Eu não sabia que seria a última vez que falaria com ele!”
Com efeito, a realidade cruel abateu Mehray. “É a forte fé em minha religião que me mantém viva. Carrego dia após dia nas costas porque algumas vezes parece que estou no escuro, perdendo as esperanças. Mas não serei silenciada! Continuarei a lutar por justiça até que meu marido esteja em segurança e liberdade, junto de mim”.
“Fizemos votos de permanecer ao lado um do outro e mantenho a minha lealdade. Manterei minha promessa até o fim, até que possamos nos reunir mais outra vez. Eu o amo profundamente”, concluiu Mehray.