Em 31 de agosto de 1897 tinha fim o 1º Congresso Sionista Mundial, que durou três dias, na cidade suíça de Basileia, mais conhecida em nossos dias por ser uma espécie de central regulatória do sistema bancário global. Presidido pelo austro-húngaro Theodor Herzl, um jornalista ateu que se fez líder do movimento sionista, nascido na Europa para “emancipar” os professantes do judaísmo nesta parte do mundo, posto que vítimas de perseguição por parte de seus concidadãos europeus, o encontro destes (basicamente) euro-judeus sionistas tomou duas decisões que vertebrariam sua ação nas décadas seguintes: construir um “lar” (estado, de fato) exclusivamente judeu e que este teria lugar fora da Europa, de onde a maioria é originária e vivia, sendo a Palestina o endereço escolhido.
Este evento é coberto de louros pelos sionistas de todos os matizes. É pintado como se fosse a “redenção” dos judeus, quando era rejeitado pela maioria dos professantes do judaísmo, que queriam viver as conquistas da Europa de então, que davam por iguais todos os seus cidadãos, independentemente de suas fés religiosas. E para Herzl é construída uma biografia mítica, quase que de um libertador nacional em luta anticolonial, quando era exatamente o oposto, um defensor ferrenho do colonialismo racista europeu, do qual queria os favores para realizar o seu próprio projeto colonial, igualmente racista, em domínios coloniais europeus. Era até mesmo designado como um “falso profeta” que buscava enganar as massas judaicas para cooptá-las para esta temerária empreitada.
Tudo isso acaba consolidado numa narrativa atual triunfante porque há uma equivocada ideia de que o projeto sionista “venceu”, que “deu certo”, com um estado judeu “criado” exatamente onde planejado, para onde acorrem estrangeiros professantes do judaísmo de todo o mundo. A verdade é bem outra e louvar o evento que deu início ao projeto colonial racista, desde o princípio tendo por pressupostos uma limpeza étnica e um regime de apartheid, baseado num regime supremacista, visa exatamente esconder esta sua face horrenda e o fracasso de toda a empreitada.
Para falar deste congresso e do movimento sionista é preciso desmistificar até mesmo suas decisões, que foram dissimuladas para que trafegasse com menores (eventuais) resistências, no que passou a ser tratado como o “Programa da Basileia”.
Mitificação do movimento Sionista
Primeiro de tudo, a “emancipação “nacional’” judaica poderia ocorrer em qualquer canto do mundo, e não necessariamente na Palestina. Entre os locais possíveis para o projeto colonial estavam Chipre, a Patagônia Argentina, Madagascar, Congo e Uganda. Ora, se a Palestina era a “terra de Israel”, conforme os mitos ditos bíblicos e adotados pela propaganda sionista, como explicar que a “promessa” (de um deus étnico e racializado, que “elege” apenas um pequeno grupo humano como “escolhido”) pudesse se realizar em qualquer parte do globo, inclusive conquanto nesta houvesse poder colonial europeu? Isso torna mais clara o que é, de quando é e de quem parte a verdadeira “promessa” – a chamada “Declaração Balfour”, do ministro de negócios estrangeiros britânico Arthur James Balfour, de 2 de novembro de 1917, é a “promessa” real.
Um segundo elemento crucial é a tentativa dos sionistas de esconderem seu real projeto estatal, bem como suas dimensões. Escondem o termo “nacional”, por exemplo, e aprovam apenas que se trataria de um “lar” para judeus na Palestina. E a menção à Lei Internacional também desapareceu, restando apenas a vaguidão da Lei Pública, tudo a pretexto de não desagradar ao Império Turco-Otomano e seu sultão (Abdul Hamid II governou de 1876 a 1909), que poderia interpretar o movimento sionista como “subversivo”, ou que conspirava para desmantelar o mesmo.
Conceito da “Grande Israel” propagado pelos sionistas à época compreendia um território que ia do Rio Nilo (Egito) ao Rio Eufrates (Iraque), abarcando a totalidade da Palestina e da Jordânia, todo o Líbano, quase toda a Síria e o Iraque, partes da Arábia Saudita, da Turquia e do Kuwait
Isso chega a ser uma hipocrisia, visto que os sionistas gozavam dos favores otomanos desde antes deste primeiro congresso. Os primeiros colonos euro-judeus chegam à Palestina no início dos 1880 (1881 para uns e 1882 para outros). Embora na permissão otomana aos judeus para viverem fora de seu império, de 1881, excetuava-se a Palestina (que, curiosamente, integrava-o), o barão Edmond Rothschild (de Paris) começa a financiar a colonização da Palestina por euro-judeus em 1882, sob as barbas otomanas.
E embora haja uma série de decisões otomanas conflitantes com os interesses sionistas (1882 permite visitas de peregrinos e homens de negócio judeus à Palestina, mas proibindo o assentamento, restringida aos peregrinos em 1884, e a rejeição, em 1896, da Palestina ao projeto sionista – neste ano Herzl publicara seu livro “Der Judenstaat”, ou “O Estado Judeu”, no qual aventa Argentina e Palestina como locais de sua realização), os fatos no terreno demonstraram uma aliança às sombras. Tanto que o primeiro confronto entre camponeses palestinos e colonos euro-judeus recém-chegados se deu em 1886. E em 1890, o Mutassarrif (oficial administrativo otomano para Jerusalém) Rashad Pasha manifestou simpatia pelos colonos sionistas, sofrendo forte objeção de líderes palestinos, especialmente de Jerusalém.
O resultado concreto das omissões otomanas frente à colonização sionista foi que estrangeiros judeus adquiriram, até 1918, quando finda seu império, 420 mil dunums (1,5% das terras palestinas), dobrando para 3% as terras palestinas em mãos do sionismo. Detalhe: a quase totalidade foi comprada de proprietários feudais libaneses, especialmente das famílias Sursock, Tayyan, Tueni e Medawar, ou da administração otomana, em leilões públicos de terras confiscadas de camponeses palestinos que não conseguiam pagar os impostos (estima-se que 93% das aquisições sionistas tenham se dado nesta modalidade).
E a compra de terras pelos sionistas só não foi maior porque lideranças palestinas de então trabalharam para evitar a colonização sionista da Palestina. As iniciativas foram desde pressão às autoridades otomanas ao engajamento na compra de todas as terras visadas pelos sionistas. Numa dessas iniciativas, de 1897, o Grande Mufti de Jerusalém, Xeque Muhammad Tahir al-Hussaini, impediu muitas transferências de terras aos sionistas ao chefiar um órgão com poderes para auditar estes pedidos. Mesmo assim, dada a corrupção da administração otomana, os sionistas resolviam tudo por meio de subornos, isso somado à grande influência que o sionismo tinha no seio do império.
Ainda quanto ao segundo elemento, ao falarem os sionistas em Eretz Israel, que seria a “terra de Israel”, o público entenderá que que é referência à Palestina tal qual mapeada após 1920 (Conferência de San Remo), o território depois fixado para o mandato (de protetorado) colonial britânico, outorgado pela então Liga das Nações em 1922, também referido, atualmente, como “Palestina Histórica”. Nada disso! Trata-se do que os sionistas entendem ser o “Grande Israel”, cujas fronteiras iriam do Rio Nilo (Egito) ao Rio Eufrates (Iraque), abarcando a totalidade da Palestina e da Jordânia, todo o Líbano, quase todo território de Síria e Iraque, partes da Arábia Saudita e do Egito, bem como, ainda que em frações menores, partes da Turquia e do Kuwait. Em seu auge, o mapa que o movimento sionista estampava em suas publicações panfletárias tinha esta dimensão.
“Grande Israel” hoje
À luz disto é possível tecer considerações atualizadas para melhor compreensão de tudo que seu deu na região deste a autoproclamação dos sionistas como nação e estado na Palestina, em 14 de maio de 1948. Embora devolvido em 1979 ao Egito, a Península do Sinai ficou em poder de Israel por 12 anos. O Líbano foi ocupado por Israel de 1975 a 2000, onde permanece em parte menor até os dias de hoje. E na Síria segue ocupando as Colinas de Golã desde junho de 1967. E não é irracional interpretar os eventos destrutivos no Iraque e na Síria à luz desta ideia (e plano) sionista, bem como a desestabilização permanente do Líbano, mais visível, e a do Egito, não tão visível. Criar caos para implantar regimes amigáveis na Turquia e no Irã, com vistas à obtenção de um cinturão de segurança ao “Grande Israel”, não é difícil de imaginar como corolário lógico.
Interpretar o mundo e a região visada pelo sionismo sob as lupa e propaganda sionistas é uma opção, mas estas não resistem aos fatos e às provas que os documentos revelam. O 3º Congresso Sionista, por exemplo, também em Basileia e quando Herzl presidia a Organização Sionista Mundial, decidiu que o mais importante era o esforço para o povoamento da “Terra de Israel” e que seus fundos (da Companhia de Colonização Judaica) seriam gastos “somente” na Palestina ou na Síria. Bem, aí está a Síria como destino do “povoamento” e dos fundos com vistas a tal. Leia-se com atenção que a decisão fala em “somente”, permitindo tranquilamente se compreender que poderiam ser destinados a outras partes, quer dizer, a mais porções territoriais do almejado “Eretz Israel”.
O “antissemitismo” como aliado
Outra hipocrisia dos sionistas mais proeminentes, especialmente Herzl, diz respeito à razão alegada para seu projeto: o “antissemitismo”, termo propagandístico para designar o que de fato se dava, isto é, o antijudaísmo. Curioso notar que, de fato, este era mais o motor do que a razão para a existência do inventado nacionalismo entre os euro-judeus.
Em seu discurso aos cerca de 200 presentes ao 1º Congresso, Herzl disse que “o antissemitismo sempre nos fortaleceu. O sionismo é o retorno ao judaísmo, antes mesmo do nosso retorno à pátria judaica”.
Noutra ocasião, Herzl foi ainda mais despudorado e direto, afirmando: “Vou expressar a minha definição de nação. No meu entender, uma nação é formada por um grupo de pessoas de reconhecível coesão, mantidas juntas por um inimigo comum. Se acrescentarem à minha definição a palavra judaica saberão o que significa uma nação judaica”.
E praticamente concordando não apenas com o pensamento de Herzl e do sionismo, mas especialmente com a estratégia destes, o Kaiser alemão Wilhelm II, também conhecido como Guilherme II, escreveu à margem do relatório sobre o encontro sionista, que lhe fora enviado pela representação diplomática alemã em Berna, Suíça: “Estou inteiramente de acordo com que esses judeuzinhos sigam para a Palestina. Quanto antes forem, melhor. Não colocarei qualquer obstáculo no seu caminho”.
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E é assim que começa a catástrofe do povo palestino, que teve por marco trágico inicial, 50 anos mais tarde, uma decisão da ONU, que, ainda que de mera adoção de um relatório que somente recomendava a partilha da Palestina, foi o estopim para uma cruel limpeza étnica, a tomada do território e a implementação de um brutal regime de Apartheid. Mas também começa o fracasso do sionismo. Este fracasso pode ser recuado, como seu princípio, à própria Declaração Balfour, bem como à própria Resolução 181, da ONU, que recomendou a partilha da Palestina.
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