Na programação da 17ª. Mostra Mundo Árabe de Cinema, o filme inédito “Farha”, primeiro longa-metragem da cineasta Darin J. Sallam, traz representação do que o poeta palestino Mourid Barghouti descreve em seu belíssimo “Eu vi Ramallah”(Casa da Palavra, 2006): a ocupação israelense roubou dos palestinos até o amanhã.
Realização do Instituto da Cultura Árabe (ICArabe) e Serviço Social do Comércio (Sesc São Paulo), com patrocínio da Casa Árabe, Centro Cultural da Câmara de Comércio Árabe e Instituto do Sono, além de vários apoios, a mostra teve início no dia 31 de agosto e se encerra nesta quarta-feira, 7 de setembro, com a exibição de “Farha” no CineSesc, em São Paulo, às 20h30.
O filme conta uma das histórias da Nakba (catástrofe palestina consolidada com a formação do Estado de Israel em 15 de maio de 1948 mediante limpeza étnica planejada) através da protagonista Farha (em árabe, alegria), uma menina de apenas 14 anos de idade que vive em um vilarejo onde não há escolas para garotas, cujo desejo é estudar na cidade. Na época, a maioria do povo palestino era de família camponesa e vivia em aldeias como a retratada na produção cinematográfica.
Pouco antes do vilarejo de Farha ser cercado, bombardeado e invadido pelas gangues sionistas, seu pai, um mukhtar (chefe do vilarejo), lhe entrega o papel que permitirá a ela realizar seu sonho. Na cena seguinte, Farha está no balanço com Farida, sua amiga, compartilhando sua felicidade, misturada com preocupação em deixar só o pai, quando o som das bombas e rajadas de metralhadoras anunciando a violência da ocupação as alcança.
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O sonho é interrompido. A Nakba usurpa a terra, a infância, o amanhã, o que poderia ser, o devir. A partir daí, as cenas se passam em um porão onde o pai de Farha a coloca para protegê-la, não sem antes lhe entregar a chave da casa, símbolo do retorno.
As imagens claustrofóbicas lembram o abandono a que foram empurrados os refugiados palestinos e são entremeadas pelo simbolismo de, a partir de então, a menina acompanhar os maus tratos a sua terra de origem por uma fresta, submetida a toda sorte de privações. A maturidade precoce a alcança.
Baseado em fatos reais, o filme de Darin Sallam é fragmento de uma sociedade destroçada pela colonização e limpeza étnica há mais de 74 anos. É a memória de uma das cerca de 800 mil vítimas em 1948 e de uma das mais de 500 aldeias destruídas em apenas seis meses no período.
Israel se criou em 78% do território histórico da Palestina, sobre o cemitério dos vilarejos e cidades e sobre corpos palestinos. Em 1948 estatísticas dão conta de aproximadamente 13 mil mortos em genocídios cometidos em dezenas de aldeias, que serviram de propaganda para a limpeza étnica. A produção cinematográfica desvela a tragédia.
Como frisou a diretora em entrevista, que escutou essa história de seus avós palestinos desde tenra idade, o desejo de jogar luz sobre a Nakba a partir da menina Farha foi tratar vidas como a dela não como números. São cerca de 800 mil nomes palestinos e palestinas que tiveram esse destino em 1948, perfazendo 2/3 da sociedade. São milhares de memórias e sonhos interrompidos.
Assista aqui a fala de Darin Sallam sobre o filme.
Em 1967 Israel ocupou os 22% restantes da Palestina – Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental. A Nakba continua.
A ocupação usurpou o amanhã de milhares de refugiados como Farha, mas não conseguiu seu intento de promover o que o historiador israelense Ilan Pappé denomina “memoricídio”. “Os velhos morrerão, os jovens esquecerão”, prenunciou o arquiteto da limpeza étnica e primeiro-ministro de Israel em 1948, David Ben-Gurion.
Não poderia ter se enganado mais. Sob apartheid, na diáspora e no refúgio, a identidade, o pertencimento a uma terra ancestral, a memória sob constante ameaça de apagamento são transmitidas de geração para geração. Os palestinos existem porque resistem. E esse é o reconstruir do amanhã roubado representado em “Farha”.