Ibrahim al-Koni: ‘Pátria não significa pátria até o momento do exílio’

Escritor líbio Ibrahim al-Koni [Mariam Al-Salik]

No século VII d.C., forças omíadas avançam em todo o Norte da África. Seu rápido progresso é alimentado por tesouros, riquezas e uma dinastia definida por opulência e devassidão. Mediante tamanho combate, uma rainha guerreira berbere, Al-Kahina, busca resistir. Foi a partir da perspectiva de Al-Kahina que o escritor líbio Ibrahim al-Koni compôs seu novo romance – em inglês, “The Night Will Have Its Say” – que compreende uma série de relatos das conquistas árabes, com tradução de Nancy Roberts.

Al-Koni nasceu no noroeste do Saara, no território líbio, em 1948. Aprendeu a ler e escrever em árabe somente aos 12 anos de idade. No entanto, escreveu mais de 80 romances, contos e poemas, todos inspirados pelo vasto deserto. Em 2015, foi finalista do Man Booker International Prize. Em entrevista concedida a Amelia Smith, al-Koni explicou a simbologia por trás de Al-Kahina, sua conexão com a terra e o processo de tradução de sua obra.

Onde você encontrou inspiração para The Night Will Have its Say?

Nossa fonte de inspiração é nossa postura sobre valores humanos, porque é destes valores que emanam as grandes questões da existência. A partir dessa perspectiva, Al-Kahina foi uma heroína não pelo poder de sua autoridade, mas sim por seu sacrifício em nome dos valores que abraçou como se fossem sua religião.

Dado que a coragem é considerada uma virtude, ficamos acostumados a associá-la à masculinidade. Portanto, Al-Kahina foi duplamente heroica pois não era um homem e fez até mesmo o que homem nenhum foi capaz de fazer: defender o elemento mais sagrado de qualquer cultura – isto é, sua terra. Mais do que isso, ela jamais “perdeu a cabeça” diante do adversário, ciente de que ações estremas – mesmo em autodefesa – poderiam ser consideradas uma forma de agressão.

Al-Kahina escolheu combater o agressor sem perder sua consciência da verdade, que – por sua vez – consiste no amor. Ela enfrentou seu inimigo com amor; caso contrário, jamais teria adotado um descendente de estranhos como seu filho, após amamentá-lo de seu próprio peito, por meio de tamanho ritual sagrado. Al-Kahina tampouco abdicou de seus valores de fraternidade, mesmo quando seu filho escolheu traí-la e espioná-la. Este paradoxo, sem contar seus desdobramentos, já tem potencial de tragédia, capaz de nos inspirar por gerações.

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Como a sua criação na tradição tuaregue influenciou o romance?

O filho do deserto que viveu sua realidade permanece conectado a modelos mitológicos como Al-Kahina por diversas razões. A primeira e mais importante é que o deserto é berço da mitologia – ferramenta digna de prestar tributo a figuras lendárias como Al-Kahina. Em segundo lugar, somente alguém que cresceu entre os amazigues do deserto é capaz de reivindicar o direito de fazer justiça a heróis como Al-Kahina. Por fim, Al-Kahina pertencia aos butrs, descritos em fontes históricas como “berberes nômades” – precisamente quem me ensinou a lutar pela verdade.

Por que você escolheu contar sua história do ponto de vista de uma rainha guerreira berbere?

Porque dramas heroicos sempre narrados da perspectiva da vítima. Do contrário, não poderiam ser descritos como “heroicos” ou “dramáticas”. Deus ama as vítimas; entretanto, seus agressores sempre personificam a inverdade.

Al-Kahina é descrita como símbolo de mulher e símbolo da resistência contra a ocupação estrangeira e o patriarcado. Qual símbolo ela representa para Ibrahim al-Koni?

Para mim, ela é um verdadeiro símbolo de autodefesa, pois devotou-se sobretudo à resistência contra a injustiça, o que a tornou uma heroína. O fato de ser também mulher a tornou duplamente heroica; ao sobreviver até a terceira idade, mostrou-se três vezes heroica. Alguém como al-Kahina desafia o destino. Por essa razão, sua história é epítome da tragédia; pela simples razão de que não conta, desde o princípio, com a salvação da protagonista.

Como Al-Kahina dialoga com os anseios populares e contemporâneos do Oriente Médio e Norte da África?

Al-Kahina é, por definição, uma figura controversa. O opressor certamente tomará uma postura hostil em sua direção, enquanto a vítima a verá como heroína lendária. Em contraponto à representação de alguns historiadores, o conflito deste romance não remete à contenda entre a verdade e a mentira ou entre o monoteísmo e uma religião pagã. Ao contrário, os fatos históricos registrados nesta obra – todos são verdade – foram obtidos de escritos de viajantes e testemunhas de estatura iminente e demonstram que o conflito fundamental não alude à “verdade”, mas sim aos espólios.

Basta notar que Abdullah Ibn Abi Sarh, um apóstata do Islã contra o qual o Profeta deferiu pena de morte, foi escolhido pelo califa Uthman Ibn Affan para liderar os exércitos islâmicos que invadiam o Norte da África, não devido a seus talentos excepcionais, mas porque era seu irmão de leite. Foi somente este laço familiar que salvou Abdullah Ibn Abi Sarh após o Profeta considerá-lo digno da sentença capital por sua apostasia. Isso significa que a campanha contra o Norte da África foi meramente um capricho ou ainda, como indicaram alguns autores, uma “versão da verdade a serviço da mentira”.

A mais poderosa evidência deste fato pode ser encontrada na posição tomada pelo justo califa Umar Ibn Abdul-Aziz, que denunciou as práticas blasfemas dos exércitos que forçavam as comunidades norte-africanas a pagar o jizya, apesar de sua conversão ao Islã – isto é, coagidos a um tributo pago com suas próprias filhas. Quando Umar Ibn Abdul-Aziz ordenou o fim a tamanha blasfêmia, todas as elites omíadas se revoltaram, apreensivas com a eventual falência do tesouro islâmico. Sobre tais temas orbita meu romance. Foram estes conflitos que resultaram no assassinato do grande califa, por envenenamento.

O livro retrata uma opinião profunda sobre a guerra, diferente da que vemos nos noticiários. Qual o papel da literature na compreensão da guerra?

Este romance se preocupa com o espírito e o valor da história, e não sua palavra. A missão do historiador é reunir fatos. Tais fatos, com os quais o historiador deve se preocupar, são matérias e resultado da história, mas não sua causa. Quanto ao romancista, a preocupação não se refere a resultados, mas às causas, pois precisamente na motivação repousa o drama humano – seres humanos como enigma da existência, mas também seu tesouro. Não podemos recuperar a realidade histórica a menos que consigamos escutar o bater do coração dos movimentos históricos, sua causa e sua lógica –o que a literatura nos permite fazer.

Você foi descrito como mestre do realismo mágico e do poder de evocação do deserto. Você descreveria o deserto como um “personagem” de seus livros?

Seria mais correto dizer realismo mágico ou magia da realidade? Penso que esta possibilidade é mais apropriada, porque a realidade é mágica. Tamanho encanto desafia as fronteiras da realidade, ao permitir que a obra transborde ao desconhecido – ao metafísico. Desta maneira, a dimensão existente e a dimensão perdida se reúnem. É por isso que a criação artística frequentemente aborda a dimensão perdida da existência e o que ela tem a dizer.

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O deserto sempre foi a “Academia das Ciências Místicas”, como gosto de chamá-lo. A realidade “alienada” – para além do mundano – é mais rica e eloquente, pois a realidade mitológica e a mitologia, como conhecemos, é precisamente fonte da criatividade. De fato, é a medida da criatividade adotada por Platão e Aristóteles. Não há riqueza espiritual fora da dimensão mitológica. Portanto, penso que seria melhor evitarmos o termo “realismo mágico” e empregar, em seu lugar, o termo “realismo mitológico”; dado que a mitologia é imprescindível. O deserto, portanto, não é apenas um personagem, mas toda uma mitologia, a própria fada madrinha da existência humana.

Seu romance compreende diversas referências à conversão sob coação da violência em contraste com a fé como resposta à escritura. Trata-se de um assunto exclusivo das conquistas árabes de então ou é algo universal, transversal à história, presente ainda hoje?

Primeiro, é preciso compreender que toda grande nação tem sua própria escritura e que a nação amazigue não é exceção. Não obstante, é uma escritura que corre nas veias da comunidade e que se manifesta em seu comportamento; não necessariamente por escrito. Precisamente isso levou Santo Agostinho – que pertenceu à mesma crença – representar uma nação estrangeira com uma espécie de tribo divina, em contraponto com a tribo então assentada, descrita por ele como mundana. O mesmo pressuposto levou Santo Agostinho a absolver Platão – tradicionalmente descrito como “imã da sabedoria” –, entre outros pensadores antigos, da acusação de paganismo, ao considerar que o fator determinante à dimensão religiosa é a fé e não a condução de certos rituais. O patrimônio mitológico amazigue demonstra uma fé profundamente monoteísta. Desta maneira, ao contestar o arauto do Rei dos Árabe, Al-Kahina argumentou a partir de sua própria escritura – cuja materialidade é ausente, mas cuja presença é evidente em sua conduta, de acordo com o célebre enunciado de São Paulo: “A palavra mata, mas o espírito concede a vida”. Isso significa que a religião não representa um empreendimento literal, mas uma experiência espiritual.

Dado seu estilo único de escrita, sua obra certamente não foi fácil de traduzir. Como escritor que escolhe cuidadosamente suas palavras e sentenças, como se sente ao entregar seu trabalho a outra pessoa para que possa traduzí-la?

Confesso que não tive sorte com a tradução de meu trabalho desde o início de minha carreira literária, sobretudo desde 1971, quando minha obra começou a ser traduzida a idiomas europeus. A razão é bastante simples: embora eu seja obcecado sobre minha escrita jamais tive liberdade para escolher meus tradutores. Vez ou outra, são eles que me escolhem. Meus tradutores me fazem sua vítima pois – por definição – são amadores, não evocadores. Portanto, é natural que eu me sinta alienada por suas traduções.

Em árabe, há duas palavras diferentes para tradutor: mutarjim e turjumān.  Turjumān não é o mesmo que mutarjim. O turjumān detém uma responsabilidade moral que se torna uma espécie de fardo ou missão. Apenas o turjumān é digno de assumir o fardo de construir pontes entre as culturas. Quanto ao mutarjim, este exerce o papel de mediador; aquele que, na linguagem do comércio, é pouco mais que um corretor. Sua prioridade é a transação utilitária e não o valor espiritual do texto. Os mutarjims são, evidentemente, a vasta maioria. Não obstante, se você tiver a sorte de encontrar um turjumān, isso significa ser consagrado com um texto além do seu. Neste caso, você testemunha o milagre de uma tradução talvez mais poderosa até mesmo do que o texto original.

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É este milagre que Gabriel García Márquez confessou vivenciar com a tradução de sua obra ao inglês, que supostamente superavam o original em espanhol, assim como sua tradução ao árabe, realizada por Salih Ilmani. Outros exemplos: a tradução de Sêneca do russo ao latim por Asherov; de Shakespeare ao russo por Boris Pasternak; e do alemão ao russo de Erich Maria Remarque. Isso quer dizer que o turjumān acrescenta um novo elemento espiritual ao texto, de modo que ele ou ela já é apenas um tradutor, mas um erudito. Dito tudo isso, considero a tradução de Nancy Robert deste livro a mais importante de todas as versões de minha obra ao idioma inglês – ao menos até então.

Terra ou pátria (watan) e seu significado, sobretudo no contexto da guerra, é um tema central de seu livro. Como a guerra altera a percepção de sua terra – ou sua pátria?

Jamais me canso de repetir: mais importante do que os países que habitamos são os países que habitam em nós, porque os países que habitamos são apenas lugares. De fato, podem ser um fardo que nos subjuga com preocupações mundanas, que matam nossa paixão pela terra. Quanto aos países que habitam em nós, são o valor atribuído ao espaço, um paraíso renascido em nossa alma, graças ao que há de mais sagrado – isto é, a liberdade.

Isso quer dizer que a “pátria” não adquire o verdadeiro significado de “pátria” até o momento do exílio. As guerras são uma forma de alienar as nações de sua própria identidade, pois ameaçam a liberdade de seus cidadãos. A pátria tornar-se então um sonho, ou até mesmo uma obsessão, um ideal que perde sua dimensão como lugar e assume seu caráter de paraíso renascido. Quem sabe, por essa razão, a experiência humana demonstrou que as nações não podem ser salvas por aqueles que vivem aprisionados a elas, mas sim por aqueles que deixaram seu cativeiro. Essa é outra maneira de expressar a lei extemporânea nos concedida pelo patrimônio tuaregue, que conclama: “Plante seus pés na terra, mantenha sua cabeça fora dela, pois assentar-se tornar-te-á parte dela; isto é, seu prisioneiro. Caso aconteça, não poderá defendê-la quando os inimigos atacarem. Não obstante, ao permanecer do lado de fora, evitará invasões. Aqueles que se libertam da terra são aqueles capazes de libertá-la; jamais seus colonos, que se tornam seus prisioneiros”.

The Night Will Have Its Say foi publicado em inglês em 30 de agosto pela editora Hoopoe Fiction

 

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