A introdução de um agente israelense do Mossad como o mais recente personagem de um filme da Marvel extrapola todos os limites, mesmo pelos ínfimos padrões morais de Hollywood. Não obstante, a super-heroína israelense Sabra deve ser interpretada dentro de uma progressão racional da israelificação de Hollywood – um fenômeno surpreendentemente novo.
Sabra é um personagem relativamente antigo, que remonta à série de histórias em quadrinhos The Incredible Hulk (O Incrível Hulk), publicada pela Marvel no início da década de 1980. Em 10 de setembro deste ano, contudo, foi anunciado que o personagem israelense terá sua estreia nos cinemas em Captain America: New World Order (Capitão América: Nova Ordem Mundial), novo filme dos estúdios Marvel, produtora subsidiária do conglomerado Disney.
Como esperado, muitos ativistas pró-Palestina nos Estados Unidos e em todo mundo se enfureceram. Uma coisa é introduzir um personagem comum com o objetivo de normalizar o Estado de Israel – a despeito de seu resoluto apartheid – aos olhos de um público jovem e impressionável. Outra coisa é tentar normalizar o Mossad israelense, agência de espionagem conhecida por inúmeros assassinatos, atos de sabotagem e casos de tortura.
Ao inserir Sabra a seu panteão de super-heróis, os estúdios Marvel demonstraram absoluto desdém pela enorme campanha de milhões de fãs em todo mundo que, em 2017, protestaram contra a inclusão da ex-soldado israelense Gal Gadot no filme Wonder Woman (Mulher Maravilha). Gadot é uma eloquente apoiadora do governo e do exército de Israel.
Em resposta aos anúncios recentes, muitos ativistas destacaram corretamente uma tendência inerente a Hollywood, cujas raízes remontam ao filme Êxodo de Otto Preminger, lançado na década de 1960, com Paul Neumann como seu protagonista. A obra apresentava uma justificativa pseudo-histórica para a colonização da Palestina pelas forças sionistas. Desde então, Israel foi elevado, celebrado e representado por Hollywood em um contexto sempre positivo, enquanto muçulmanos, árabes e palestinos continuam a ser demonizados.
Embora Israel seja representado por um viés positivo em Hollywood, os israelenses em si pouco apareciam no processo de criação de conteúdo. Até recentemente, o construto israelense era vastamente elaborado em nome de Israel e não pelo próprio estado sionista. “As coisas começaram a mudar em 1997”, escreveu Brian Schaefer em artigo publicado pela Moment Magazine. Foi então que a Divisão de Entretenimento da Federação de Los Angeles e a Agência Judaica lançaram seu projeto Master Class, o qual: “Por quase 15 anos … levaram incontáveis atores, diretores, produtores, agentes e executivos dos estúdios e das redes de televisão a Israel, para apresentá-los ao país e ensinar aos israelenses como vender seus projetos”.
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A doutrinação de atores e cineastas estadunidenses por meio dessas visitas e a exportação de atores e cineastas israelenses a Hollywood compensou o investimento e levou a uma mudança considerável na narrativa cinematográfica sobre Israel. Ao invés de meramente comunicar o ponto de vista israelense a audiências nacionais e internacionais – sob referências de vitimização histórica, associação positiva ou mesmo comédia –, entes e indivíduos sionistas receberam um canal direto para expressar seu ideário através de Hollywood. E diferente do maniqueísmo das mensagens anteriores – sionistas bons, árabes maus –, o novo texto é muito mais sofisticado, elaborado sobre ideias específicas, com consciência plena da conjuntura política de cada era.
Munique (Munich), filme de Steven Spielberg, foi lançado em 2005, no contexto cultural da invasão militar dos Estados Unidos ao Iraque, como parte da chamada “guerra ao terror”, a qual tornou a violação de direitos humanos uma prática comum em escala global. Munique é um recorte “histórico” sobre as escolhas supostamente difíceis que Israel – isto é, o Mossad – teve de tomar para travar sua própria “guerra ao terror”. Naquele momento, o regime israelense buscava destacar incansavelmente sua afinidade com os Estados Unidos, ao explorar um caráter mútuo no qual ambos os países se projetam como vítimas de “extremistas islâmicos”.
Diferente de Munique, a popular série de televisão Homeland não foi somente outro projeto a justificar as guerras e a violência de Israel. A própria série – um dos programas de televisão mais notavelmente racistas e islamofóbicos jamais produzidos – baseou-se inteiramente na produção israelense HaTufim. Gideon Raff, roteirista e diretor da série original, foi então contratado como produtor executivo da versão americana.
A mudança de propriedade da narrativa audiovisual pode parecer superficial – à medida que a propaganda sionista em Hollywood é substituída gradualmente por uma publicidade orgânica. No entanto, não é o caso.
A agenda pró-Israel do passado – a romantização que sucedeu a criação do Estado de Israel, via limpeza étnica dos nativos palestinos, em 1948 – pouco durou. A derrota dos exércitos árabes em 1967 – graças ao vasto apoio militar dos Estados Unidos a Tel Aviv – substituiu a imagem de Israel como país nascente e vulnerável pela promoção de um exército forte, capaz de derrotar múltiplos inimigos de uma única vez. Pouco depois, estudantes israelenses que haviam servido ao exército sionista se tornaram um lugar comum nas universidades americanas, sobretudo ao se vangloriar de seu suposto “heroísmo” no campo de batalha. Não obstante, a invasão de Israel contra o território libanês e os subsequentes massacres – como nos campos de refugiados de Sabra e Shatila – levaram o público a repensar seu ponto de vista.
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No decorrer das décadas de 1980 e 1990, o estado israelense apareceu em Hollywood como mero alívio cômico, em particular, em programas de televisão como Friends, Frasier e – mais recentemente – The Big Bang Theory. Referências a Israel passaram a acompanhar risadas, uma maneira eficaz de vincular o regime sionista a associações afetivas e positivas.
A “guerra ao terror”, deflagrada em 2001 e sucedida pelo projeto Master Class, permitiu a Israel retornar ao cosmos de Hollywood, não como referência ocasional, mas como agente majoritário na produção de conteúdo, com obras israelenses ou binacionais que definiram um novo gênero narrativo: escolhas difíceis para combater o terrorismo e “salvar o mundo”.
A exploração das mulheres israelenses nas capas de revista – por exemplo, a Maxim – emergiu como um empreendimento sinistro e capcioso, porém distinto, voltado a atrair públicos mais amplos. Meninas israelenses recrutadas ao exército, muitas vezes seminuas, conseguiram – aos olhos de muitos – justificar a guerra mediante um imaginário sexualizado. O gênero se tornou particularmente frequente no encalço das sangrentas ofensivas israelenses contra a Faixa de Gaza, que mataram centenas de residentes palestinos.
A crescente influência de Israel sobre os filmes de super-heróis da Marvel é uma combinação de todos esses elementos: a normalização daqueles que cometem crimes de guerra – soldado Gadot, agente Sabra –; a sexualização da mulher supostamente forte e empoderada; e a injeção direta de prioridades sionistas como parte da realidade cotidiana dos públicos internacionais.
Ainda assim, há um ponto positivo. Por décadas, Israel escondeu-se atrás de noções falaciosas e romantizadas sobre sua própria história, ao introduzir seu ponto de vista nos Estados Unidos e nos mercados ocidentais de maneira indireta. As sucessivas guerras contra Gaza, a ascensão exponencial do movimento de boicote palestino e a proliferação das redes sociais, no entanto, forçaram Israel a sair às claras.
O novo Israel de Hollywood é o retrato de um guerreiro, confrontado regularmente por dilemas morais; contudo, como seu homólogo americano, em última caso, é uma força do bem. Se Israel conseguirá ou não manter essa imagem ao longo do tempo depende de diversos fatores – em particular, a capacidade das comunidades pró-Palestina a responder adequadamente a uma nova onda de mentiras e propaganda sionistas.
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