Embora seus detratores o retratem como extremista, o estudioso islâmico Yusuf al-Qaradawi, nascido no Egito, foi um pesquisador moderado cuja abordagem flexível da lei islâmica (Sharia) o contrapôs aos verdadeiros radicais, nos mais diversos campos – incluindo na arena política. Al-Qaradawi manteve constância e coerência ao advertir contra arapucas extremistas, não importa onde estejam ou quem decidiu instalá-las.
A compreensão al-Qaradawi ao tratar dos acontecimentos modernos do ponto de vista da Sharia o levou a descrever a atual crise enfrentada pela comunidade islâmica global (Ummah) como uma crise de pensamento. Segundo sua conjectura, tamanha crise compreende a interpretação errônea dos ensinamentos fundamentais do Profeta Muhammad e seu subsequente espírito de tolerância. Tais erros de leitura se refletem nas práticas adotadas pelo mundo islâmico em geral, sobretudo na política.
Exilado em Doha, capital do Catar, al-Qaradawi inclinou-se à simplificação das teses; entretanto, sem jamais abandonar seus fundamentos políticos ou religiosos. Desde o princípio, suas ideias sobre a Jihad – luta ou resistência armada – foram claras, contra aqueles que almejam despojar os muçulmanos de sua identidade e filosofia. Sua postura culminou em ataques de duas frentes distintas: radicais muçulmanos, por um lado; e colaboracionistas com entes externos, por outro, que comprometeram as capacidades da Ummah, e mesmo sua cultura, ao entender as atitudes de acadêmico sunita como obstáculo majoritário para que entreguem as chaves do reino a seus próprios inimigos.
Há certamente harmonia entre teoria e prática na abordagem intelectual de al-Qaradawi, assim como em suas opiniões políticas, ao ponto de que se tornou em vida um ponto de referência a diversas personalidades e instituições do mundo islâmico. Contudo, a mudança nas alianças e o ritmo acelerado da Primavera Árabe, acompanhados por inevitáveis disputas sociais, criaram um contexto no qual partidos políticos adotaram posições contrárias a suas tradições. Deste modo, muitas das ideias de al-Qaradawi foram deliberadamente distorcidas e amortizadas, para que fossem aceitas oportunamente por todo o mundo islâmico
Tolerância no pensamento e na prática
As posições francas do sheikh al-Qaradawi sobre questões políticas e intelectuais, junto de seu comportamento sobre tais matérias, permite contrapor interpretações distorcidas de sua obra e seus discursos. Sua posição sobre os eventos de 11 de setembro de 2001 representa um exemplo notável de sua abordagem rigorosa. Al-Qaradawi descreveu eloquentemente a tragédia como ato criminoso e tornou-se um dos primeiros acadêmicos islâmicos a condenar os ataques – não lhe importava sua crença, nacionalidade ou local de nascimento. Al-Qaradawi reiterou o caráter ilegal dos atentados terroristas, sobretudo pela morte de civis.
Em entrevista a uma emissora japonesa de televisão, em 2017, al-Qaradawi voltou a condenar os ataques de 11 de setembro. No entanto, insistiu crer que os responsáveis não representavam muçulmanos no verdadeiro sentido da palavra; mesmo que assim se identificasse, ainda seriam criminosos, dado que o fundamento islâmico de respeitar a vida de todos os seres humanos. Para ilustrar sua interpretação dos fatos, al-Qaradawi aludiu ao Corão: “Aquele que mata uma alma salvo por outro alma [isto é, sob processo lícito e adequado] ou por corromper a terra é como se matasse toda a humanidade. Aquele que salva uma alma é como se salvasse a todos”.
‘Terrorismo’ e resistência palestina
Al-Qaradawi acreditava que o conceito nominal de “terrorismo” possuía elementos específicos oriundos da tolerância ou não à legislação islâmica e aos sistemas de comportamento, moral e ética. Para o religioso sunita, matar ou ferir pessoas inocentes, destruir, expropriar ou danificar suas terras e propriedades equivaleria a atos desumanos e ilógicos, para além da natureza social de nossa espécie.
Para al-Qaradawi, o conceito de terrorismo incluía, portanto, o terrorismo de estado cometido pelas autoridades da ocupação israelense contra o povo palestino, de forma a legitimar ações “retaliatórias” em diversas partes do mundo. Quando ao 11 de setembro, al-Qaradawi pôs em xeque a própria consciência americana – “… para que Washington reveja suas políticas como possível motivo para tamanho incidente e atos similares, em particular, perante suas posições injustificadas que possuem caráter de dupla moral – sobretudo contra árabes e muçulmanos. A mais notável de tais posturas abusivas é seu constante viés em favor de Israel e de suas políticas hostis aos árabes e palestinos”.
Para al-Qaradawi: “É uma injustiça tremenda descrever combatentes que defendem sua terra, seus santuários e seus lugares sagrados como criminosos terroristas, ao passo que assassinos continuam impunes”. Sua abordagem fundamenta-se no contexto palestino, em particular, com destaque para a luta do povo palestino contra a ocupação, consagrada pela lei internacional; a busca por justiça aos palestinos nativos; a condenação injusta de seu direito à resistência; e o retrato faccioso e impreciso de Israel como eterna vítima.
Em seu livro Jurisprudência da Jihad, al-Qaradawi trata diretamente do assunto: “Israel é o mais notável estado global alicerçado sobre atos terroristas desde seu primeiro dia, conduzidos por gangues do Haganah e suas chacinas, perpetradas em Deir Yassin e outros lugares. As milícias sionistas expulsaram os palestinos de suas terras ancestrais e então construíram seu estado sobre as ruínas”.
Dada sua crença resoluta no direito dos nativos palestinos de recuperar seus direitos usurpados a terra, dignidade e autodeterminação, o sheikh al-Qaradawi envolveu-se quase naturalmente nos esforços para ajudá-los. Sobretudo, al-Qaradawi sempre se preocupou em conscientizar o público internacional sobre a causa palestina e advertir a todos sobre os planos sistemáticos de Israel de aniquilar o caráter árabe-islâmico de Jerusalém em favor de colonos judeus. Tudo isso o levou a “institucionalizar” os esforços em nome de seus objetivos.
Al-Qaradawi foi motivado pela convicção de que a comunidade islâmica internacional possui “vasto e ilimitado poder financeiro, político e econômico, sem qualquer reconhecimento real de suas capacidades para empregar tais ações corretamente”. Neste contexto, foram estabelecidas diversas instituições com intuito de exercer um papel crítico no apoio à resistência palestina e fornecer ajuda humanitária à população carente. Dentre as entidades mais proeminentes, há dezenas de fundações e órgãos beneficentes árabes e islâmicos que trabalham desde 2001, sob as ideias de al-Qaradawi, para prestar socorro e desenvolver projetos na Cisjordânia e Faixa de Gaza. Dentre as ações: distribuição de alimentos, adoção de órfãos da violência, apoio a saúde e educação; e iniciativas de emprego a jovens graduados.
Para denunciar as ameaças aos santuários de Jerusalém, al-Qaradawi criou também a Fundação Internacional de Jerusalém, que conferiu a toda uma geração mais jovem acesso a informações sobre a história e o status legal da cidade ocupada e sua importância a árabes, muçulmanos e cristãos. A organização exerceu ainda um papel crucial na preservação da identidade local, para resgatá-la das garras da ocupação, ao assegurar a presença de palestinos nativos em suas terras e casas.
Al-Qaradawi advertia contra a divisão política na Palestina, ao lamentar suas repercussões, e foi um dos primeiros estudiosos muçulmanos a proferir um apelo público por união e reconciliação nacional, desde o coração de Gaza – que visitou em 2013 – até os confins da Cisjordânia. “Não devemos nos render a tamanha divisão”, reiterou al-Qaradawi. “Precisamos de união para obter nossa vitória e os palestinos devem se mobilizar por meio de uma liderança unívoca”. Conforme seu ponto de vista, os responsáveis pela fragmentação seriam “traficantes da causa” e deveriam ser superados para unificar a nação. “Queremos que todos segurem as mãos uns dos outros e trabalhem juntos”, enfatizou.
Diálogo interreligioso
O respeitado discurso de al-Qaradawi se caracterizou pela tolerância e por esforços de paz para além dos horizontes do mundo árabe e islâmico. Muitos de seus artigos se referem a uma ideia de fraternidade e harmonia entre os mais distintos líderes e povos. Em entrevistas e fóruns, sua postura se manteve em defesa de instilar aos jovens princípios de boas relações e moderação, conforme sua interpretação característica do Islã, ao encorajá-los a praticar a misericórdia e a não-violência, com intuito de superar tensões.
Al-Qaradawi ajudou assim a organizar a 1ª Conferência de Diálogo Interreligioso na cidade de Doha, em 2003, que culminou na criação do Centro Internacional de Diálogo Interreligioso de Doha, quatro anos depois – segundo os anseios do então emir catariano Hamad Bin Khalifa al-Thani. A missão de sua série de conferências internacionais era encontrar soluções às tragédias globais oriundas de supostas disputas religiosas e encerrar, portanto, o sofrimento humano que emana dos discursos de ódio e sectarismo.
Al-Qaradawi participou de inúmeras conversas entre representantes muçulmanos e ocidentais, em particular, no Fórum Mundial Islã-Estados Unidos, realizado anualmente na cidade de Doha. Tais eventos atraem pesquisadores, políticos, agentes públicos, sacerdotes das mais diversas congregações, intelectuais, personalidades de mídia, entre outras figuras, para debater avanços civilizacionais. Durante a quinta edição da conferência, em 2007, al-Qaradawi instou Washington a “investir seus bilhões gastos em dominação global – ou mesmo metade disso – nos problemas e nas demandas do planeta, sobre no sul periférico e nos países de terceiro mundo”.
Por meio de sua tese e comportamento de tolerância, al-Qaradawi propôs um equilíbrio moral na percepção internacional dos muçulmanos e suas comunidades, ao enfatizar os verdadeiros ensinamentos do Islã, que pedem por conciliação e harmonia entre os seres humanos. Para al-Qaradawi, o diálogo e a comunicação aberta são essenciais a todas as sociedades, congregações e povos. Al-Qaradawi buscou mobilizar movimentos islâmicos em nome de ações beneficentes e propositivas em todo o mundo e – onde possível – combinar esforços para combater melhor a pobreza, a ignorância e a doença.
Não obstante, al-Qaradawi sempre alertou sobre o uso ocidental da filantropia como fachada para difamar e mesmo atacar o Islã e seus seguidores. Esforços missionários na Ásia e na África, por exemplo, buscaram desorientar comunidades islâmicas para coagi-las a abandonar sua fé e sua entidade histórica. Para al-Qaradawi, para conter tais ataques, era necessária ação dos governos em favor de fundações islâmicas, com raízes profundas no trabalho humanitário. Tais entidades beneficentes trabalham agora com populações pobres e carentes em todo o mundo, sem discriminar religião, credo ou etnia. Em suma, segundo seu ponto de vista, os fundamentos islâmicos e sua ética proferida pelo Profeta Muhammad sempre foram compatíveis com ações positivas e propositivas.
“Pessoas que sofrem com desastres naturais devem receber o apoio da comunidade islâmica global”, reafirmou al-Qaradawi, em certa ocasião. “Temos o dever de prestar socorro àqueles que sofrem, alimentar os famintos, abrigar os desabrigados, curar os doentes e agir conforme nossa solidariedade plena a nossos irmãos e irmãs de toda a humanidade”.
O sheikh Yusuf al-Qaradawi reformulou a consciência islâmica contemporânea, ao empregar um sistema de pensamento moderado sem deixar qualquer um de seus princípios para trás. Seu código de ética se caracterizou por flexibilidade, tolerância e harmonia, sem jamais transgredir as fronteiras de sua própria doutrina ou as crenças do próximo. Seus esforços diante das ameaças ocidentais e sionistas – em particular, no Oriente Médio – deixaram um legado de preservação da identidade islâmica, dos direitos civis e humanos da população árabe nativa e do patrimônio representado pelos santuários cristãos e muçulmanos em Jerusalém. Al-Qaradawi reuniu apoio humanitário, social e econômico para tanto, ao longo de décadas de trabalho – em benefício não apenas da Ummah, mas de todo o mundo.
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