O olhar internacional sobre as eleições e a disputa pelo Brasil profundo

A união de forças pró-democracia em torno da candidatura de Lula à presidência convenceu quase metade do eleitorado, conquistando 48,4% dos votos para o ex-presidente que esteve por um triz de encerrar a disputa no dia 2 de outubro. Mas os mirrados 1,6% que o separaram da vitória no primeiro turno tiveram um peso maior do que se mede em percentuais, quando seu oponente disparou, de 31% nas pesquisas para 43,2% nas urnas. As explicações são apenas especulativas, mas esse salto reanimou conservadores que até então estavam envergonhados e titubeantes com o fiasco e as bravatas de seu governo. Encorajados, voltaram a desfraldar bandeiras.

O desafio para a campanha Lula mudou. De fazer crescer a onda produzida por diferentes frentes unificadas para expulsar o diabo do atraso,  passou a ter de lidar e compreender como é possível que uma parcela da população que, mesmo conhecendo as agruras impostas por tal diabo, volte a ser mobilizada e atira-se às ruas dispostas a renovar seu poder.

O mês de outubro está exigindo musculatura dobrada para a campanha que mexeu fortemente com as esperanças de um Brasil mais humano. Também eletrizoua expectativa internacional de que o país se livre de Bolsonaro e volte a usar seu peso nas relações com o mundo. Foi tocante, entre todas as demonstrações de fora do país,  ver que a esmagadora maioria dos eleitores brasileiros na pequena Palestina ocupada votou com Lula, e perceber o contraste dela com os resultados obtidos em Israel. Desde lá, é evidente o ferrenho confronto ideológico que o mundo trava no maior pais da América Latina.

Fora do país, uma extrema direita articulada 

O consultor americano Steve Bannon, guru da extrema direita desde que o Brexit ensinou   a usar os dados pessoais disponíveis nas redes para produzir resultados políticos,  tem olhos grandes sobre o que se passa nestas eleições. O Brasil, na sua visão, fará pender, para o mal ou para o bem, a balança de um bloco ideológico mundial que conecta os EUA do trumpismo, a Hungria de Viktor Orban, a Itália de Giorgia Meloni – esta a primeira-ministra que se elegeu dizendo-se admiradora de outro diabo do atraso, o fascismo de Mussolini.

Na América Latina que luta por democracia, a direita espreita preocupada com países que vão se afastando de sua esfera de influência e que o Brasil pode levar para ainda mais longe. Bannon recentemente disse à BBC que a conversa que mantem “principalmente com o Eduardo (Bolsonaro) é sobre como desenvolver um movimento nacionalista populista na América Latina… Sempre tentei ser uma espécie de ponto de intercâmbio, para ter certeza de que podemos fazer conexões e interligar as pessoas”, declarou.

O rumo da conversa, porém, é menos inocente do que “aprender a fazer campanha, aprender a enviar mensagens, aprender a construir redes etc”, como foi a explicação singela do guru.

.Uma passagem do livro   Guerra pela Eternidade: o retorno do Tradicionalismo e a ascensão da direita populista (Editora Unicamp, 2020), do  escritor americano Benjamin Teitelbaum,  recorda as primeiras experiências de manipulação do grupo extremista em torno de Bannon “para tirar os indivíduos-alvo da corrente dominante (mainstream) e expô-los cada vez mais às mensagens feitas sob medida que deslegitimariam as fontes-padrão de informação e radicalizariam o apoio a uma dada causa política”.  No caso da votação do Brexit, a  experiência nas redes incluiu “atingir um seleto grupo de eleitores no Reino Unido com anúncios vistos 169 milhões de vezes durante os dias finais da campanha”.

Ao investigar ligações de Bannon com o então ainda vivo Olavo de Carvalho – guru de Bolsonaro – Teitelbaum apontou também as crenças escatológicas e anti civilizatórias, aplicadas à política como caminho da extrema direita  para confrontar sistemas e valores democráticos  contemporâneos. Nada que não se pareça com as disputas do Brasil de hoje.

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A democracia, bem ou mal, tenta proteger liberdades que não interessam aos supremacistas. E  cria mecanismos contra o assalto aos recursos cobiçados pelas elites neoliberais. Alianças destas elites com os extremistas de ocasião têm utilidade.  Com este atrativo, Bolsonaro chegou ao poder. Só que esses momentos radicalizados tendem a se arrastar  por anos e enredar a todos em futuros cada vez mais perigosos.

Jair Bolsonaro antes de um debate televisivo no primeiro turno das eleições [Rodrigo Paiva/Getty Images]

A combinação de escatologia e política  que cria exércitos fanáticos no Brasil já se guiou pela promessa de Bolsonaro de transferir a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém, que Israel tenta tomar para si invocando os tempos bíblicos de Salomão. A narrativa  mobilizou  as correntes neopentecostais brasileiras que ajudaram a levar Bolsonaro ao poder, enquanto movimentou a venda de armas e tecnologias à clientela brasileira,  abastecendo as polícias, o agronegócio e a vigilância política.

As normalizações dos países árabes com Israel criam agora nova oportunidade para as mudanças de embaixada, no momento objeto de acenos da primeira-minista britânica sionista Lizz Truss, que aprofunda os lados com a ocupação israelense e expande as conexões da extrema direita no mundo.  Volta a ser hora, talvez, para a embaixada brasileira ser cobiçada outra vez, algo que não se cogita no caso da vitória de  Lula e a diplomacia da escola de Celso Amorim, que não exclui os interesses palestinos na formulação de posições.    Israel ajudou Bolsonaro a saltar em seus índices no primeiro turno.

Dentro do país, a inspiração do Nordeste

Existe ainda um Brasil escravocrata, cruel e colonizado, para o qual a figura de Lula ainda é a encarnação desprezada do operário, o nordestino, o negro, o desempregado, o pobre que o pensamento colonial racista teme, prende, mata e chama de ladrão. Essa foi a alcunha que as campanhas da direita procuraram cristalizar na figura do ex-presidente com a exploração dos escândalos do governo petista. Para arrastar a classe média ao fanatismo de Bolsonaro, basta lembrar de chamar o candidato petista de “Lula ladrão” e colocar essa imagem na zona de conforto racista dos odiadores de gente desigual.

Esse lado perverso  no entanto, não alcança as camadas profundas de um Brasil rebelde e indignado com a realidade das populações exploradas, afastadas da terra, empurradas para o desabrigo urbano, famílias devolvidas à fome e mulheres que lutan para chefiá-las em meio à violência doméstica e machista, trabalhadores sem emprego ou subempregados em um país que se equilibra entre o desespero e a criatividade para a invenção cotidiana da sobrevivência.

Essa rebeldia está na memória histórica das lutas que nos transformaram em povo brasileiro. O nordestino se orgulha da tradição de resistência popular ao colonialismo escravocrata que ecoa da revolta dos Malês em Salvador, do Quilombo dos Palmares em Alagoas e até da comemoração do dia da independência que acontece na Bahia no dia 2 de julho, quando a população colocou os soldados portugueses pra correr em 2022, e antes portanto do 7 de Setembro. E agora se orgulha pela liderança  de votos de confiança dados a Lula.

Nos resultados eleitorais mapeados em azul e vermelho para cada candidato, o país parece dividir-se ao meio. Mas o Brasil profundo das lutas pela vida está por toda parte, em todas as regiões, e é com ele que Lula está desafiado a dialogar.

Mapeamento indica votações de Lula e Bolsonaro no primeiro turno das eleições presidenciais de 2022 [Imagem UOL]

O caminho de tornar o discurso ainda mais palatável  para a direita pode ser agora infrutífero, quando ela já tem seu próprio candidato revigorado para comprometer-se com a continuidade da política neoliberal e privatista. Vide o “não” que a campanha petista recebeu em São Paulo, quando seu candidato ao governo do Estado pediu apoio ao terceiro colocado, adversário no primeiro turno, que não titubeou em declarar o apoio a Bolsonaro.

No Brasil há uma chance real de lutar pelo recomeço, a despeito do conservadorismo eleito para o Congresso. Mas essa chance terá de mostrar a cara nas ruas, nas casas, nas favelas e nas aldeias e isso depende da escolha que a campanha fará. Qual será seu tom e a quem se dirigirá é a pergunta que os próximos programas e caravanas eleitorais responderão.

Na América Latina há uma esperança enorme de que o Brasil se some aos seus levantes contra os golpes, o colonialismo, o imperialismo que há tempos submetem ou sufocam suas vidas e seus governos. E há povos em luta por libertação no mundo que contam com uma quarta maior democracia que jogue peso em seu favor.  Entre eles, cercada por muros e checkpoints, há uma pequena população palestina que torce por essa guinada no Brasil.

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