“Acontece que a Síria é nossa terra sagrada”, escreveu com ironia um blogueiro russo em 2016, após tentativas de figuras públicas de retratar o país levantino como parte da Rússia, devido à intervenção militar ordenada pelo presidente Vladimir Putin na guerra civil, no ano anterior. Antes disso, a ideia de a Síria pertencer ao império russo seria absurda. Contudo, como parte da propaganda para reunir apoio à guerra russa no Mediterrâneo, “emergiram narrativas de que a Síria seria intrinsicamente conectada à própria criação da Rússia” – afirma Anna Borshchevskaya em sua obra Putin’s War in Syria: Russian Foreign Policy and the Price of America’s Absence (A guerra de Putin na Síria: Política externa da Rússia e o preço da ausência dos Estados Unidos).
Segundo o deputado russo Semyon Bagdasarov: “Se não houvesse Síria, não haveria Rússia”. Os primeiros monges radicados no território russo nasceram na Síria, reafirmou o congressista à televisão estatal; sem eles, não haveria Igreja Ortodoxa, sobre a qual o povo da Rússia construiu sua identidade histórica. Independente do mérito de suas alegações, a versão do deputado governista confirma que Moscou considera a Síria como parte fundamental de seu quadro de segurança nacional.
O Ocidente tende a interpretar de maneira equivocada a cultura estratégica da Rússia. Analistas assumem que o Kremlin se concentra exclusivamente nos Estados Unidos e na Europa; todavia, embora as relações com as potências ocidentais sejam cruciais a Moscou, o regime se preocupa igualmente – se não mais – com seu “ponto fraco” na Ásia Central e no Oriente Médio.
Borshchevskaya observa que os interesses russos no Oriente Médio têm raízes profundas e não são mero produto de eventos relativamente recentes. A Rússia entrou em confronto antes com a Pérsia e o Império Otomano. De fato, em 1770, após derrotar a Marinha otomana, o exército russo capturou e ocupou brevemente a cidade libanesa de Beirute. Para Moscou, a Ásia Central e o Oriente Médio estão conectados à identidade estratégica do país.
Muito diferente do Reino Unido e da França, cujos impérios ficavam territorial e alegoricamente apartados da metrópole, a maior parte da expansão russa avançou às custas da independência de seus vizinhos. Portanto, o império e a Rússia coincidem e a pátria-mãe não poderia viver sem ele. Essa diferença característica incorreu no desenvolvimento de uma cultura estratégica cujas fronteiras entre guerrilha ofensiva e defensiva são, na melhor das hipóteses, turvas. É essencial considerar tais fatos ao refletir sobre as ações do Kremlin no território sírio, como corroborou a pesquisa de Borshchevskaya.
Aproveitar o fracasso de Washington em intervir contra o presidente sírio Bashar al-Assad e – concomitantemente – tentar obter status de potência aos olhos dos Estados Unidos motivaram as investidas do presidente russo Vladimir Putin. Entretanto, seu governo não quer repetir erros de antecessores. Quando a Rússia entrou no conflito sírio, emissários americanos alegaram que seria mais um Afeganistão. Não obstante, como destacou Borshchevskaya, os mesmos enviados deixaram de que considerar o que aprendeu a Rússia com sua ocupação afegã na década de 1980. Desta vez, o objetivo na Síria é salvar o regime Assad, mas não a qualquer custo. Moscou escolheu concentrar poderes aéreos e navais com um número restrito de combatentes em solo, ao relegar operações de infantaria a forças iranianas e suas milícias por procuração. Além disso, agentes militares russos revezaram o comando dos atos em campo com seus homólogos sírios, para que pudessem estudar a dinâmica da guerra em primeira mão. Esta abordagem permitiu ao Kremlin sustentar sua campanha na Síria sem repetir seu fiasco no Afeganistão.
A Síria ainda não é um incidente passado, alerta Borshchevskaya: “Um eixo mais explícito entre Rússia, Irã e Assad será lesivo a interesses ocidentais além do Oriente Médio. A Síria continuará a operar como catalisador de instabilidade regional e internacional no futuro próximo”. Sua obra abarca boa escrita e pesquisa detalhada, digna de uma leitura atenta, pois oferece ao leitor percepções concretas sobre a mentalidade estratégica da Rússia e o que significa Damasco ao presidente Putin. Porém, há ainda espaço para analisar em mais detalhes os confrontos internos entre forças pró-Moscou e pró-Teerã no território sírio, além das tensões latentes entre os três aliados.
O livro, não obstante, é uma leitura essencial aos interessados em política externa. O estudo de Borshchevskaya confere um contexto muito mais amplo do que o habitual, um quadro analítico importante capaz de enriquecer discussões sobre temas globais e regionais.