Regiões como Daguestão, Chechênia e Cáucaso tendem a nos parecer como territórios sob jugo longevo e resoluto da Federação Russa. No entanto, o controle de Moscou remete há somente algumas centenas de anos. Uma parte considerável da região possui raízes no Império Otomano. No século XVI, o então Ducado de Moscóvia – mais tarde a Rússia – e os governantes otomanos passaram a competir um com o outro pelo norte do Cáucaso. Esta parte esquecida da história é precisamente o tema do novo livro de Murat Yasar, publicado sob o título The North Caucasus Borderland: Between Muscovy and the Ottoman Empire – A fronteira norte do Cáucaso: Entre o Czarado da Rússia e o Império Otomano.
O Cáucaso é uma região vasta e passou por diversos governantes e conquistadores. No entanto, como diz Yasar: “A rivalidade entre impérios sobre o norte do Cáucaso permitiu a seus povos e suas instituições políticas a desfrutar de considerável autonomia e mesmo, em alguns casos, ao ponto da independência”. Em outras palavras, a história da rivalidade entre impérios não alude à perda da autonomia local – ao contrário, a disputa geopolítica às portas do Cáucaso pode ter lhe favorecido.
A importância da obra deve-se parcialmente ao fato de que o norte do Cáucaso continua como área sensível aos interesses da Federação Russa. Na década de 1990 e nos anos seguintes, duas guerras foram travadas entre Moscou e separatistas chechenos. Mais recentemente, as regiões majoritariamente islâmicas do Cáucaso vivenciaram protestos contrários ao recrutamento de massa imposto pelo presidente russo Vladimir Putin, para combater na Ucrânia. Há uma noção generalizada de que a invasão russa ao território vizinho representa um conflito imperial; Putin referiu a seu país e suas intenções como “civilizacionais” ao invés de “estado-nação”. Enquanto este conceito se determina por suas fronteiras, o anterior as transcende. O estudo de Yasar nos proporciona um retrato histórico da expansão russa na região do Cáucaso.
Antes de o Czarado da Rússia se envolver na política caucasiana, a principal rivalidade sobre os territórios em questão referia-se aos otomanos, por um lado, que reivindicavam a área oeste, e os safávidas persas, por outro, que reivindicavam o oriente. Além disso, o terreno montanhoso e diverso tornava o controle absoluto da região algo particularmente difícil. Nas montanhas ao norte, a governança se fragmentava e envolvia pequenas comunidades tribais. No sul, incluindo Geórgia, Armênia e Azerbaijão, a predominância era ora otomana ora safávida.
No norte do Cáucaso, a geografia produziu efetivamente uma população diversa falante de ao menos quinze idiomas sem qualquer conexão com as principais famílias linguísticas. Tais povos têm as mais diversas origens étnicas – incluindo nogais, calmuques, eslavos e circassianos. O norte do Cáucaso era administrado por um regime aliado de Constantinopla, conhecido como Canato da Crimeia – um estado independente sediado no sul da Ucrânia contemporânea, sob a tutelagem do Império Otomano. Como aponta Yasar, controlar o norte do Cáucaso era parte da estratégia otomana para asseverar seu acesso ao Mar Negro, como rota marítima fundamental à segurança política e econômica da metrópole.
Yasar caracteriza a presença otomana da seguinte forma: “Ao estabelecer a ordem e construir lealdade, vassalagem ou distritos administrativos ao longo da costa do Mar Negro, os otomanos confiaram aos cãs da Crimeia a gestão dos assuntos na região ampla do norte do Cáucaso e nas estepes setentrionais”. Contudo, em 1556, o Czarado de Moscóvia entrou em cena e mudou a dinâmica da estratégia otomana.
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Ivan, o Terrível – infame czar russo – destituiu o Canato de Astracã, cujos povos eram súditos da Crimeia e, portanto, dos otomanos. A resposta local foi variada: alguns viam Moscou como aliado em potencial, capaz de ajudar nas disputas locais; outros, como ameaça. O novo império parecia outorgar aos povos locais novas oportunidades e proporcionar certa autonomia. A estratégia inicial de Moscou foi cooptar as elites regionais, ao lhes conferir títulos nobiliárquicos e novas rotas comerciais. Em alguns casos, cooptá-las requeria sua conversão ao cristianismo ortodoxo, com intuito de cimentar sua aliança. Para os otomanos, reagir a Moscou foi algo complicado, dada sua política de permitir autonomia ao Canato da Crimeia.
A conjuntura compeliu cada vez mais os governantes otomanos a intervierem militarmente no norte do Cáucaso; apesar de perdas preliminares, eventualmente seus avanços ganharam força. “Os otomanos conseguiram estender seu poder e sua influência a toda a fronteira do norte do Cáucaso, após repelir duas ofensivas moscovitas com o objetivo de controlar o Daguestão … as tentativas de Moscou de romper a influência otomana na região, ao instituir suserania sobre o Daguestão, eventualmente fracassou e resultou em sua retirada completa”.
Este livro é uma obra acadêmica destinada a certo nicho; portanto, algum grau de familiaridade com a região e sua história pode ajudar o leitor a absorver seus detalhes. Seria razoável ampliar seu escopo ao século XIX, durante o qual a colonização russa se concretizou em meio ao declínio otomano – um contexto mais próximo da conjuntura política contemporânea da região. Porém, prevalece a ideia: é importantíssimo ver uma representação distinta e crítica dos impérios não-ocidentais.