O conceito de martírio é compartilhado pelas três religiões abraâmicas; além disso, na época do surgimento do Islã, era compreendido como parte integral das fés cristãs e judaica. No entanto, para Adel Hashemi, em seu livro The Making of Martyrdom in Modern Twelver Shi’ism: From Protesters and Revolutionaries to Shrine Defenders – em português, A construção do martírio no xiismo duodecimano moderno: dos manifestantes e revolucionários aos Defensores do Templo –, o que separa a concepção islâmica das outras é precisamente a noção de martírio articulada pelo Profeta Muhammad, como parte do processo de “construção do estado”.
Ao complementar a bibliografia prévia sobre o martírio no Islã, sua obra assume como enfoque a ideia de “martírio sectário”, desenvolvida ao longo do tempo em meio às denominações xiitas. Seu desenvolvimento levou a uma verdadeira mudança de paradigma, ao diferenciar sua noção de martírio da compreensão clássica, ao trespassá-la por transformações internas do xiismo e da conjuntura política – com destaque para a mudança drástica entre séculos de calmaria e o veemente ativismo contemporâneo, legado indubitável da Revolução Islâmica de 1979, com um profundo e duradouro impacto na interpretação moderna do martírio entre os xiitas.
Ao explorar a ideia de martírio sectário, Hashemi explica que, após o veemente expansionismo militar nos anos de formação, tornou-se cada vez mais improvável que os muçulmanos fossem martirizados por gentios nos campos de batalha. Ao invés de outras fés, tornou-se cada vez mais provável que o martírio decorresse de avanços de outros muçulmanos, sobretudo elementos sectários cada vez mais proeminentes, com destaque para a forte perseguição adotada por autoridades sunitas contra compatriotas xiitas. Como resultado: “Cada denominação obteve seus próprios mártires reverenciados, sem reconhecer jamais os mártires da margem oposta”.
Contudo, foi a tragédia de Carbala e a morte do neto do Profeta, Imam Hussain, que alterou de maneira dramática a percepção xiita sobre o martírio, que persiste até hoje. Conforme o autor, a Ashura “foi o evento mais importante dos primeiros anos do Islã, ao estabelecer de maneira decisiva o modelo xiita de martírio”. A morte de Hussain, segundo Hashemi, serviu de “símbolo de resistência e ponto referencial para a identidade predominante da minoria xiita”.
Não é possível debater o martírio sectário entre os xiitas sem abordar sua compreensão oposta dentre os sunitas – contraposição mencionada na obra. Para a maioria sunita, o martírio perdeu gradativamente sua relevância, à medida que cessaram as conquistas islâmicas. Todavia, com a queda do califado abássida e o conceito de Ocultação do 12º Imã – isto é, a noção de que o descendente de Mohammad já está entre nós –, ambas as denominações se viram diante de um intricado dilema político. No período moderno, no entanto, “em particular, o século XX e a era pós-colonial se tornaram solo fértil para teorias modernas sobre jihad e martírio” – ideia válida tanto aos sunitas quanto xiitas.
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De fato, Hashemi observa que o fenômeno de martírio ressurgiu primeiro entre denominações sunitas. Segundo o autor, isso provavelmente emanou do fato de que o colonialismo impactou primeiro regiões majoritariamente sunitas, como parte do colapso do califado otomano.
Crucial a tamanha conjuntura, não obstante, é precisamente o papel do clero e a abordagem de ambas as denominações sobre a noção de martírio. Ao passo que o Grão Mufti pouco a pouco perdeu influência sobre as massas sunitas, os seminários xiitas (hawzahs) “permaneceram mais ou menos no centro dos movimentos político-religiosos dos últimos séculos”. Sua centralidade foi então cimentada pela Revolução Islâmica no Irã, de modo que o martírio “se tornou parte da agenda do estado e lhe serve como fator de legitimação”.
Foi depois da revolução, ao longo da devastadora guerra entre Irã e Iraque, quando o martírio sectário mais se cultivou como poderosa ferramenta de mobilização. Na república islâmica, em particular, o termo martírio evoluiu de “fenômeno puramente religioso a conceito amplamente político”, aplicado não somente aos mortos nos campos de batalha, mas alvos de assassinatos e vítimas de desastres nacionais – incluindo cientistas nucleares e Qasem Soleimani, comandante das forças al-Quds, na primeira categoria, e mesmo trabalhadores de saúde que perderam suas vidas durante a pandemia de covid-19, na segunda.
A parte mais fascinante do livro – talvez, a mais relevante dado o atual ambiente geopolítico no Oriente Médio – é a sessão que aborda os chamados “Defensores do Templo”, termo cunhado pelo próprio Soleimani em referência a forças voluntárias de facções xiitas de diferentes países, ansiosas em proteger seus santuários de supostos gentios. O fenômeno tomou volume sobretudo em meio à guerra civil na Síria, ao passo que o conflito ganhou um caráter cada vez mais sectário, e como consequência direta do atentado a bomba contra o templo de al-Askari, no Iraque, em 2006.
O caso dos Defensores do Templo é notável na Síria, região marcante por seu papel na história do Islã xiita como base da dinastia omíada. Vemos também o simbolismo considerável em torno do templo de Sayyida Zaynab, na cidade de Damasco, local de descanso da heroína de Carbala e “representação material do sofrimento vivenciado pela família de Mohammed”.
Os Defensores do Templo assumiram para si a missão de proteger, por assim dizer, o harém de Ahlulbayt – termo em árabe para aludir à família do Profeta –, inspirados pelas ações de Zaynab e Abbas, meio-irmão de Hussain. “Zaynab não será duas vezes cativo” foi um slogan que ganhou popularidade nas redes sociais, em referência ao massacre de Carbala.
O fenômeno na Síria serviu ainda de oportunidade ao martírio de uma nova geração de xiitas, sobretudo jovens iranianos que cresceram em um ambiente de cultura institucional que glorificava os mártires da guerra brutal contra o Iraque. Há naturalmente uma dimensão política deste processo, dado que o aspecto religioso não somente ajudou a justificar as intervenções iranianas nos conflitos regionais como deu verniz de legitimidade a interesses da república em agir externamente nos campos de batalha – ao invés de levar os conflitos às ruas de Teerã.
A contribuição de Hashemi à literatura sobre o tema representa uma leitura essencial a todos que se interessam em compreender a psiquê religiosa por trás dos conceitos contemporâneos de martírio xiita e sua politização. O autor observa que o fenômeno é relativamente recente e representa uma ruptura substancial do status quo apolítico do Islã xiita.
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O apêndice sobre o martírio no islamismo clássico – último assunto do livro – colabora bastante em conceder informações sobre o tema, apesar do viés acadêmico de empregar fontes sunitas como parte da tradição de pesquisa e suas convenções. O capítulo reconhece a tradição sunita de sua abordagem, mas poderia examinar ainda fonte xiitas sobre a mesma matéria, sobretudo dado o tema fundamental do livro – mesmo que tais abordagens fossem menos acessíveis ao público médio das universidades ocidentais. Ainda assim, a obra de Adel Hashemi ajuda o leitor a compreender melhor os conflitos sectários no Oriente Médio contemporâneo, para além da política, através da lente abrangente do conceito de martírio.