Afirmar a um país faminto que a fome não existe é algo que ainda não se tinha visto no Brasil. Culpar quem tem fome por não ter conseguido acessar ajuda do governo é outro caso para estudo da neurolinguística marqueteira. Acredite-se ou não, estas são mensagens do próprio presidente da República e candidato à reeleição replicadas à exaustão a um país que tem hoje 33 milhões de pessoas sem meios dignos de se alimentar.
As eleições brasileiras são uma encruzilhada entre a retomada da democracia ou a ameaça declarada às suas instituições e, por isso, é importante observar o modus operandi da extrema direita para mobilizar certos públicos suscetíveis a apelos e bombardeios que não necessariamente se referem aos programas políticos em discussão.
Como diz um estrategista da campanha de Bolsonaro, o ministro Ciro Nogueira, não se trata mais de discutir economia, e sim os temas pautados pelo direitista, especialmente em torno de valores conservadores. Além de criar “uma sensação passageira de bem-estar, anabolizada por benefícios temporários”
A fome e o endividamento das famílias têm sido objeto de chantagem, com “bondades” em dinheiro despejadas pelo governo no ano eleitoral e que – a grande ameaça – podem acabar se o presidente não for reeleito.
As redes sociais foram descobertas como arma de destruição em massa da sensatez nas disputas políticas. E o Brasil tem sido um enorme laboratório de experimentos.
Testes de convencimento nas eleições passadas revelaram um público capaz de acreditar que a terra não é redonda ou que governos de esquerda distribuem nas creches mamadeiras em formato de pênis. Neste cenário, é plausível que desta vez pessoas atingidas pela morte de um ente querido não vacinado contra o coronavirus ainda sejam convencidas a votar no candidato que desdenhou da gravidade da própria covid-19. Nada explica, a não ser a campanha anti-vacinas na pandemia, que famílias agora estejam deixando de vacinar suas crianças contra a poliomielite, mesmo que a doença erradicada do Brasil tenha voltado a rondar o mundo.
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A fé religiosa tem sido empurrada ao fanatismo. O pentecostalismo que segue Bolsonaro reproduz a narrativa sionista que avança na ocupação da Palestina islâmica e cristã, e com ela a intolerância religiosa a serviço da política. Os ataques à festa da padroeira do Brasil, Nossa Sra. Aparecida, por bolsonaristas contra a fé católica, fazem lembrar os ataques de colonos israelenses às orações na Mesquita de Al-Aqsa, para impor a tomada e judaização total de Jerusalém.
Para além dos inocentes e fanáticos,o Brasil ainda padece do legado colonial escravocrata que se espelha na cultura violenta, machista, autoritária, predadora e abusadora. Um público com rancor da perda de privilégios é também mais suscetível ao comando do ódio e do medo. Pode atacar instituições democráticas, clamar por golpes e retrocessos e exercer o coronelismo eleitoral.
Já são mais de mil denúncias que chegam ao Tribunal Superior Eleitoral contra patrões que estão coagindo seus empregados a votar em seu candidato, sob pena de demissão em caso de derrota. Funcionários são obrigados a se uniformizar com camisetas de campanha e mulheres são treinadas a levar o celular no sutiã para gravar e comprovar seu voto, prática criminosa no Brasil.
Algumas situações parecem escorregões infelizes do candidato, desmentidos depois. Mas têm seu público. A entrevista em que o presidente relata que “pintou um clima” com duas adolescentes venezuelanas fala direto ao voto cafajeste. A imagem descrita é de um típico predador forasteiro que lembra as falas do deputado paulista cassado, Arthur do Val, sobre ucranianas vítimas da guerra serem “fáceis porque são pobres”. Conforme a entrevista, o presidente motoqueiro tirou o capacete e pediu para entrar na casa das meninas. Deixou no ar as intenções não declaradas. Levou as especulações sobre pedofilia aos trending topics das redes sociais. Como mensagens adicionais, a narrativa machista ainda tratou das roupas de adolescentes ‘que se arrumam” como sinais de convite à prostituição e criminalizou as imigrantes venezuelas, na verdade assistidas por uma casa social, como prostitutas.
Alimentar xenofobia, criminalizando gestos de solidariedade e parcerias brasileiras dos tempos de Lula com os países vizinhos, é outra linha de campanha. Especialmente porque menções à Venezuela e Cuba, resistentes à hegemonia dos Estados Unidos, reacendem o medo do comunismo inoculado pela ditadura militar.
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A campanha de Lula, que liderou os votos do primeiro turno, ainda administra o espanto com a quantidade de votos mobilizados de última hora pelo concorrente e seus candidatos ao parlamento. O TSE tenta vencer a corrida contra a propagação das fake news. Descobriu um pouco tarde para o primeiro turno que os últimos dias antes das urnas são usados para bombardeios segmentados de milhoes de mensagens repetidas à moda do nazista de Joseph Goebbels – uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade. Para o segundo turno, a justiça decidiu proibir essa propagação 48 horas e 24 horas depois das votações. Se isso for possível na ainda insondável deep web.
As forças democráticas estão alertas e sabem também que a disputa é de sentidos. Sua unidade eleitoral está na esperança em deter a caminhada ao inferno que a democracia vem trilhando antes e durante o primeiro governo Bolsonaro. Para o eleitorado de Lula, o inferno começou com o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, seguido de caçada judicial e prisão do ex-presidente para tirá-lo das eleições passadas. O desafio da campanha de Lula é levar sensatez e esperança às urnas. O Brasil se equilibra a um triz de começar de novo o caminho democrático. Com uma vantagem de 4 pontos nas pesquisas, é preciso manter a corda esticada para a travessia.
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