Em junho de 2021, mais de cinquenta operários estrangeiros foram encontrados em condições “chocantes”: espaços imundos e pequenos, grades nas janelas, sem extintores ou detectores de incêndio, botijões de gás nos quartos onde quatro a seis pessoas dormiam. Os trabalhadores se queixaram de agressões físicas por parte do capataz. Após a prefeitura intervir, os operários em questão desapareceram.
Meses depois, vinte trabalhadores imigrantes reclamaram a um sindicato local sobre atraso de semanas em seus salários. As condições também eram precárias: carga-horária abusiva, espaços superlotados, acomodações infestadas de insetos. Um operário foi demitido três semanas após começar o serviço, simplesmente por pedir para ir ao banheiro. Quando solicitou a rescisão de seu contrato, seus empregadores lhe disseram: “Vá embora ou quebraremos seu pescoço!”
Com a Copa do Mundo FIFA 2022 prestes a começar, histórias de exploração do trabalho contra imigrantes vulneráveis voltaram a ganhar as manchetes.
A vitória da candidatura do Catar para receber o torneio de futebol, em 2010, foi um momento de enorme entusiasmo para o Oriente Médio. Trata-se do primeiro país da região a sediar uma Copa do Mundo. Desde então, contudo, o processo foi tomado por controvérsia e inundado por discursos sensacionalistas e orientalistas sobre um Golfo corrupto e opressor, particularmente abusivo em suas relações de trabalho.
Isso não quer dizer que as condições dos trabalhadores asiáticos e africanos radicados no Catar, em particular nas obras para a Copa do Mundo, não seja menos que atroz. Entidades do direito do trabalho – entre as quais, Equidem e Centro de Pesquisa sobre Negócios e Direitos Humanos – relatam graves abusos, incluindo roubo de salários, riscos de saúde e segurança, mortes, taxas ilegais de recrutamento, discriminação de raça e gênero e assédio sexual.
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Estes registros hediondos sugerem uma tendência global, na qual precariedade e exploração se impõem cada vez mais à mão-de-obra. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) reportou recentemente que 50 milhões de pessoas no mundo vivem sob condições de escravidão, um índice que cresceu substancialmente nos últimos cinco anos.
No entanto, embora todos os exemplos citados acima se refiram a abusos contra trabalhadores imigrantes, nenhum deles ocorreu nos locais de obra da Copa do Mundo. Ambos se sucederam na Holanda: o primeiro referente a trabalhadores rurais e o a segundo, operários de uma fábrica de processamento de carne. Relatos similares ecoam em todo o continente europeu. A exploração do trabalho, em particular contra imigrantes com vistos temporários, é abundante. Trata-se de algo inerente às estruturas do capitalismo mundial, que incentiva negócios a maximizarem lucros por meio de mão-de-obra barata.
Tratar o Catar como exceção – de modo orientalista, islamofóbica e mesmo racista – representa mera distração dos problemas estruturais e sistêmicos da exploração e desigualdade.
Baixos salários, menos direitos
A escala da migração provisório com fins empregatícios é cada vez maior. Em torno de 60% dos 164 milhões de trabalhadores estrangeiros do mundo moram hoje em estados árabes, América do Norte e Europa. A migração temporária alude a diversas formas modalidades de cronograma fixo, incluindo trabalhadores convidados e esquemas sazonais. Não obstante, muitos operários vivem permanentemente em situação de migração “provisória”. Quase 90% dos imigrantes que entram em países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD) são detentores de vistos temporários.
Desde o advento da pandemia de covid-19, mais e mais histórias emergiram sobre condições de abuso e violação referentes a esquemas de migração em caráter provisório, em todo o mundo. Denúncias sobre trabalhadores rurais em escala sazonal no Canadá e na Holanda, funcionários da construção civil em Singapura, trabalhadores convidados em Taiwan e imigrantes nos países do Golfo que exercem sua profissão sob o sistema de patronato conhecido como kafala.
Imigrantes temporários, com baixa remuneração, costumam ser inelegíveis a saúde pública e a serviços de assistência social; em geral, têm menos direitos e oportunidades do que residentes permanentes e cidadãos nativos. Por definição, a maior parte dos programas de trabalhadores convidados vincula o direito do imigrante de permanecer e prestar serviços no país-anfitrião a seu contratante. Um elemento crucial do kafala e de esquemas sazonais a profissionais rurais é seu franco incentivo a relações empregatícias flexibilizadas, sob risco de exploração.
Por que então a migração temporária ganhou popularidade? Alguns estudiosos e tomadores de decisão argumentam que tais esquemas refletem um cenário de “triplo ganho”: o país-anfitrião recebe mão-de-obra barata e amplia sua produtividade e crescimento; o país de origem coleta remessas e reduz o desemprego e os custos previdenciários; e o trabalhador ganha a chance de obter uma renda em moeda estrangeira. Argumentos favoráveis, porém, ignoram disparidades entre trabalhadores com base em seu status de imigração, junto de hierarquias de raça no cenário global.
Ao contrário, esquemas de migração temporária proliferam por é algo lucrativo. Empregadores, recrutadores, contratações e governos se beneficiam das estruturas viciadas do mercado global e da subsequente exploração dos trabalhadores.
Consciência global
A Copa do Mundo é um evento esportivo com impressões digitais de todas as nacionalidades e origens. Desde os operários aos donos das empreiteiras; desde patrocinadores aos agentes que fiscalizam o trabalho e a migração; desde os atletas aos torcedores nos estádios e em casa, que assistem pela televisão.
Há uma audiência global para o evento e há também uma infraestrutura global de negócios para fazer acontecer. As empreiteiras que operam no Catar não são somente regionais, mas há ainda companhias de Reino Unido, Holanda, França, entre outros. Equipes da Federação Internacional de Futebol (FIFA) e torcedores ficarão hospedados em redes conhecidas de hotelaria incapazes de zerar acusações de violações como trabalho forçado.
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Dado que a exploração de trabalhadores estrangeiros é normal, muitas ongs consideram a Copa do Mundo como uma oportunidade para a sociedade civil transnacional conscientizar o público. Quem sabe, este é um momento que demanda mobilização coletiva; porém, gritar “Catar nunca mais” parece vazio se não enfrentarmos também as numerosas corporações europeias que se beneficiam de contratos do evento ou que exploram trabalhadores em outras regiões.
Apesar da pressão política sobre vários países ocidentais para que boicotem a Copa do Mundo, organizações de direitos advertem que isso não deve melhorar condições empregatícias. Muito pelo contrário, trabalhadores podem perder seus empregos e serem deportados. Ativistas com quem conversei no sul e oeste da Ásia também contrapõem apelos para interromper processos migratórios com fins de trabalho ou para cancelar por completo a Copa do Mundo. No lugar de tais medidas, reivindicam que a comunidade internacional respeite parâmetros de segurança e de migração ordenada e regular a países com oportunidades.
Diversas ongs lançaram então uma campanha alternativa neste ano – #PayUpFIFA – ao enviar uma carta conjunta ao presidente da federação desportiva, Gianni Infantino, para que indenize trabalhadores vítimas de abusos. A campanha pede não menos que os US$440 milhões previstos como premiação às seleções participantes da Copa do Mundo.
A FIFA sempre esteve ciente das explorações, reafirma a campanha; contudo, falhou em impor padrões de proteção no trabalho. Sob as regras de conduta dos Princípios da ONU para Direitos Humanos e Negócios, a FIFA, o Catar e todas as corporações que colaboram com o evento têm responsabilidade. Até então, a FIFA não se comprometeu com qualquer indenização. Somente sete das federações de futebol classificadas para o campeonato expressaram apoio aos apelos, em meio a uma onda de platitudes e protestos de braçadeira.
Geografia da exploração
Parte da pressão sobre o Catar ao longo da última década teve resultados. O estado começou a oferecer indenização a trabalhadores, abriu um escritório da OIT em seu território e lançou um projeto de colaboração técnica para aprovar reformas trabalhistas. Certas melhorias trouxeram regulações comprometidas com padrões internacionais.
Notavelmente, as reformas de 2018 enfim permitiram aos trabalhadores que deixem o país sem primeiro obter um visto de saída; as reformas de 2020 lhes permitiram trocar de emprego antes do fim do contrato sem autorização compulsória de seus patrões. Ao reduzir o poder dos chefes sobre suas equipes, tais reformas foram consagradas como uma forma de desmantelar o kafala; todavia, a exploração continua.
Os holofotes incitaram algumas mudanças, mas o excepcionalismo e o sensacionalismo de fato perpetuaram estereótipos orientalistas que servem como distração do combate abrangente às desigualdades globais. As denúncias em questão parecem servir mais a dúvidas de performance e desafios de relações públicas do que a qualquer mudança sistêmica.
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Ao discriminar o Catar de outros países abusivos, observadores passam a rotular o abuso como algo inerente e exclusivo a sociedades e culturas do Oriente Médio. Um exemplo convincente é quão rápido e impreciso relatos sobre mortes de trabalhadores no Catar viralizaram nos últimos anos, ao repassar narrativas sobre a região nos quais leitores ocidentais tendem a crer. Os fatos importam quando são comunicados devidamente a serviço de mudança efetiva.
A exploração sob regimes de migração temporária está longe de ser uma anomalia e demanda compreensão como fenômeno estrutural. Sem dúvida, devemos reportar abusos e nos indignar com violações; contudo, tais episódios não devem ser tratados como algo exótico e exclusivo à sociedade catariana. Ao contrário, pense se você se indigna na mesma proporção com violações cometidas em seu próprio país. Expresse solidariedade com trabalhadores próximos e distantes de sua casa – sobretudo imigrantes vulneráveis. Pressione o capital internacional que tanto se beneficia das condições exploratórias nos mais diversos contextos.
Afinal, não se trata do Catar. Trata-se das geografias da exploração inerentes à economia global exitosas ou não em obter o maior lucro pelo menor custo.
Este artigo foi publicado originalmente em inglês pela rede Middle East Eye. Uma versão deste texto em holandês está em preparação para ser publicada pela rede ZemZem.
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