Os palestinos e seus apoiadores têm razão em celebrar a vitória do candidato progressistas Luís Inácio Lula da Silva no segundo turno das eleições no Brasil, em 30 de outubro. Porém, a vitória é incompleta e pode não render frutos caso não seja adotada uma estratégia central e material por parte dos palestinos.
Lula provou, ao longo dos anos, ser um amigo valoroso dos árabes e palestinos. Em 2010, como presidente, Lula falou de seu sonho em ver “uma Palestina livre e independente”, durante visita à Cisjordânia ocupada. Na mesma ocasião, Lula recusou-se a visitar o túmulo de Theodor Herzl, pai-fundador da ideologia sionista. Ao contrário, prestou suas homenagens perante a sepultura de Yasser Arafat, em Ramallah. Naquele mesmo ano, seu governo reconheceu a Palestina como estado independente sob as fronteiras de 1967.
Seu adversário e presidente derrotado, Jair Bolsonaro, é um ideólogo extremista que professou diversas vezes seu amor por Israel. Em novembro de 2018, Bolsonaro prometeu acompanhar a deixa do então presidente dos Estados Unidos Donald Trump e transferir a embaixada brasileira de Tel Aviv a Jerusalém.
Diferente de outros líderes favoráveis ao estado ocupante, o afeto de Bolsonaro a Israel parece incondicional. Em uma entrevista concedida ao jornal Israel Hayom em 2018, insistiu Bolsonaro: “Israel é um estado soberano … Se vocês decidirem que esta é a sua capital, nós vamos acatar. Vocês que decidem qual é a capital de Israel e não outros povos”.
Em um esforço derradeiro e desesperado para ampliar a vantagem dos cristãos evangélicos nas urnas, Michelle Bolsonaro – atual primeira-dama – compareceu para votar com uma camiseta estampada com a bandeira de Israel. Este gesto sozinho é eloquente o bastante para confirmar a agenda adotada por Bolsonaro – sintomática da ideologia por trás de muitos sionistas em todo o mundo.
O triunfo de Lula e a derrota de Bolsonaro corroboram a hipótese de uma mudança política em âmbito global: lealdade a Israel não assegura mais a vitória eleitoral. Este também foi o caso de Trump nos Estados Unidos, Liz Truss na Grã-Bretanha, Scott Morrison na Austrália e, agora, Jair Bolsonaro no Brasil. Os israelenses parecem, no entanto, aceitar essa nova realidade, embora a contragosto.
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Em entrevista ao jornal Times of Israel, o pesquisador James Green explicou que cabe ao novo governo de Israel rever seu ponto de vista sobre Lula. O presidente eleito, conforme Green, não pode ser visto como radical – “em primeiro lugar, porque ele não é; em segunda lugar, porque, em sua campanha, ele teve de demonstrar moderação em todos os níveis”.
A necessidade de engajar-se com Lula – embora de má vontade – foi exposta, por exemplo, por Claudio Lottenberg, presidente da Confederação Israelita Brasileira, maior associação judaico-sionista no país. Em 31 de outubro, Lottenberg emitiu uma nota para reiterar sua “permanente disposição para o diálogo construtivo e democrático” com o novo governo.
A nova transformação política do cenário brasileiro deve beneficiar os palestinos, muito embora a ampla coalizão de governança ao redor de Lula deva conter medidas políticas mais veementes de sua parte, como fez anteriormente, durante seus dois mandatos entre 2003 e 2011.
Vale notar que Bolsonaro exerceu um papel relativamente importante no campo político global da extrema-direita, ao tentar legitimar a ocupação na Palestina. Após a Austrália recentemente revogar seu reconhecimento de Jerusalém como capital sionista, a derrota de Bolsonaro parece um novo prego no caixão proverbial do “acordo do século”.
Mudanças geopolíticas, naturalmente, são cruciais ao futuro da causa palestina. Contudo, sem que haja uma liderança nacional responsável, capaz de desfrutar das oportunidades e enfrentar os desafios, a vitória de Lula pode ser, na melhor das hipóteses, meramente simbólica.
Os palestinos estão cientes das mudanças sísmicas em sua região e todo o globo. Isso se mostra nas reiteradas visitas de entes palestinos a Moscou, incluindo o encontro entre o Presidente da Autoridade Palestina Mahmoud Abbas e seu homólogo russo Vladimir Putin, no Cazaquistão, em outubro. A conversa deflagrou a ira de Washington, mas a gestão de Joe Biden não pôde reagir efetivamente, sob receios de empurrar os palestinos ao lado do Kremlin.
A Palestina torna-se mais outra vez relevante em âmbito regional, senão central às matérias do mundo árabe – como demonstrado pela cúpula da Liga Árabe da semana passada, realizada em Argel. Contudo, para que tais mudanças se traduzam em conquistas materiais, os palestinos não podem preceder como uma entidade fragmentada.
Há três tendências globais sobre as ações do povo palestino. Primeiro, a Autoridade Palestina, que detém suposta legitimidade política como representante formal da população nativa, mas sem qualquer representação factual entre os palestinos tampouco estratégia de progresso. Em segundo lugar, estão grupos palestinos ideologicamente diversos e mais populares, porém, sem reconhecimento internacional. Por último, mas não menos importante, estão as campanhas de solidariedade, que ganharam terreno como voz da sociedade civil palestina em escala global. O último campo possui legitimidade moral, mas carece de representação legal. Ademais, sem que haja uma estratégia política unificada, as conquistas da sociedade civil não podem se converter – ao menos por ora – em ganhos materiais.
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Portanto, embora os palestinos celebrem a vitória de Lula como se fosse sua, não há uma única entidade que possa – solitária – alimentar uma mudança efetiva sobre a política brasileira, como pedra angular à luta por justiça e libertação. Os palestinos precisam rever sua liderança ou criar um novo tipo de liderança de base em seu próprio território. Até que isso ocorra, os palestinos têm de ao menos libertar sua agenda política do sectarismo doméstico.
Um ponto de partida é a criação de um órgão transicional, apartidário e técnico, cujo papel seja reconhecido por todos os entes políticos. Tamanha iniciativa pode emanar da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), marginalizada há décadas pela Autoridade. A principal meta do novo órgão político seria estudar as oportunidades na arena mundial e permitir – quem sabe, de maneira oficial – que os palestinos falem em uníssono. Para tanto, naturalmente, é preciso que grupos de destaque tenham boa-vontade para pôr diferenças de lado por um bem comum, como fez Lula. Não será fácil – ainda assim, é possível.
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