Em sua obra seminal – Orientalismo: O oriente como invenção do ocidente -, o intelectual palestino Edward Said, elabora o conceito de orientalismo que, segundo o autor, é um estilo de pensamento estruturado na distinção entre o Oriente e o Ocidente. Dessa maneira, o Orientalismo se apresenta pela construção, a partir de uma perspectiva ocidental, de uma visão idealizada da cultura oriental. Nesse sentido, a representação da Copa do Mundo do Catar na mídia ocidental e, em especial, na mídia brasileira, é marcada profundamente por uma visão míope da realidade vivida naquela região do globo.
Antes de tudo, é sempre importante ressaltar que o mundo árabe, tanto no âmbito político quanto no cultural, possui desafios profundos a serem resolvidos em um mundo cada vez mais multiconectado. Portanto, a ideia não é defender um relativismo cultural superficial a fim de afirmar uma pressuposta arabidade, mas, em verdade, o intuito é refletir sobre como o Ocidente frequentemente olha sob uma ótica estigmatizada para o Oriente, em especial, os povos árabes.
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Com a proximidade da Copa do Mundo, a mídia nacional e internacional passou a dar maior atenção à competição que se aproximava. Entre as diversas reportagens de cunho esportivo destacam-se, frequentemente, aquelas com viés crítico às instituições cataris e ao seu conservadorismo na agenda dos costumes, principalmente no que concerne ao consumo de bebidas alcoólicas e às liberdades individuais. Subsidiariamente, observa-se um grande número de matérias questionando como um país tão “controverso” foi vencedor em uma disputa para sediar o mundial. A resposta, muitas das vezes, é baseada em sutil sugestão de corrupção de agentes, sem indício mínimos sequer quanto a quem ou que organismo integram (da Fifa?), por parte do Estado catari, com seus abundantes petrodólares.
Essas reportagens e artigos representam, antes de tudo, uma tentativa de mistificação dos povos árabes como vilões, que incorreriam frequentemente, em violações de direitos humanos enquanto os críticos, as ONG’s e as potências ocidentais apresentam-se como heróis e detentores da virtude.
No entanto, a relação é frequentemente inversa. Historicamente, os povos árabes foram vítimas de ataques da cristandade ocidentalizada a partir de diversas justificativas – religião, petróleo, terrorismo. Logo, em termos históricos, se tivéssemos que utilizar dessas categorias maniqueístas, certamente os “mocinhos” da história seriam os árabes, e o Ocidente encarnaria os vilões.
Porém, o que as potências desejam com as diversas críticas ao governo do Catar e, consequentemente, aos demais povos árabes, não é libertar os países do Oriente Médio das agruras que os afligem, mas, sim, impor uma agenda que os torne permanentemente subservientes de um projeto colonial. Embora as críticas possam ser críveis, elas não foram estendidas aos demais países-sede do mundial no passado recente.
Não observamos, na mídia internacional, extensas reportagens sobre a perseguição à comunidade LGBTQIAP+ na Rússia, por exemplo. Pelo contrário, preferiram destacar o passado soviético.
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Pouco se notou na mídia, em 2014, sobre os problemas da desigualdade social no Brasil e os altos índices de homicídios, principalmente, de indivíduos transsexuais. Pelo contrário, preferiram fazer analogias com a Copa de 1950 e o passado glorioso da seleção canarinha.
Pouco se leu na mídia sobre os problemas de AIDS e p alto índice de estupros de mulheres na África do Sul, durante a Copa de 2010. Pelo contrário, preferiram focar na justa luta de Nelson Madela contra o apartheid.
Perguntamos, agora: se não fizeram com os demais, por que fazem especialmente com o Catar?
Assim, é possível observar que a percepção do ocidente em relação ao oriente é enraizada a partir de uma percepção de superioridade, na qual os países ocidentais são virtuosos e modernos, enquanto o oriente, representado pelo mundo árabe, seria um lugar de defeitos, marcado pela corrupção endêmica do aparelho estatal, por regimes ditatoriais, um modelo cultural retrógrado e um povo bestializado.
Contudo, a Copa do Mundo no Catar vem demonstrando, desde o seu início, o quão multifacetados e plurais são os povos árabes. Apesar das críticas iniciais dos torcedores em relação à proibição de bebidas alcoólicas em torno do perímetro dos estádios e, consequente, o elevado preço das bebidas, quando achadas (algo em torno de R$70,00), o que se tem observado é um profunda congregação entre os povos e a comprovação histórica da boa hospitalidade dos árabes em relação aos visitantes.
A síntese desse momento pode ser observada com a fala do treinador da seleção brasileira, Tite, ao agradecer a gentileza de um torcedor palestino ao levar ao colo um de seus netos, ao longo trajeto até o metro de Doha, em aauxílio às suas esposa e nora.
O mundo árabe está dando uma lição de civilidade ao Ocidente. Ainda que tenham seus desafios a superar, em diversas áreas – o mundo é repleto de imperfeições –, os árabes têm demonstrado, diariamente, como são hospitaleiros, gentis e generosos, em contraposição à frequente novelização dos telejornais dos dramas dos países da região, reais ou inventados.
Assim, embora existam situações que mereçam críticas nas instituições do mundo oriental, elas não podem ser utilizadas como ferramenta política pelas grandes potências ocidentais para mistificar a população árabe ccomouma horda de vilões e o ocidente – historicamente responsável por processos profundos de colonização e exploração – como uma legião de heróis.
O intuito dessas críticas, portanto, não é livrar o mundo árabe de seu passado atávico, que insiste em se manifestar, mas de impor uma agenda que subalternize as nações do Oriente Médio e as impeçam de alcançar e traçar seus próprios destinos sem a presença de tutores.
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