No dia 29 de novembro, Dia Internacional de Solidariedade com a Palestina, um morador de Jerusalém e outro de Hebron, estavam chegando à Tunísia para compartilhar sua visão e experiências no enfrentamento à ocupação israelense. O fato de chegarem lá já é uma exceção e uma aventura empreendida sob muito risco na vida palestina, onde o direito de ir e vir simplesmente não existe sem que os passos sejam controlados pelas forças ocupantes.
Os visitantes chegaram para um seminário do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial (FSM), organizado para discutir desafios atuais da humanidade e o papel do próprio fórum no apoio a lutas como a dos palestinos – contra a colonização, o apartheid, o imperialismo e as ameaças comuns contra a vida humana, como as guerras e o esgotamento do planeta.
Os dois primeiros dias foram marcados por análises da situação mundial e do Magreb Mashreq – e da própria Tunísia sob golpe de Estado desferido pelo próprio presidente eleito. O FSM esteve no país durante os meses da chamada primavera árabe, organizou fóruns e seminários nos anos seguintes, e agora estava de volta, compartilhando apreensões e solidariedade com as ações de resistência.
No seminário, os impactos das grandes políticas do mundo sobre populações exploradas e invisíveis foram melhor traduzidos pelos depoimentos comoventes das mulheres agricultoras esquecidas e violadas nos campos tunisianos, esmagadas feito gado em lotações que matam trabalhadoras pelo caminho, e da pescadora que já não anda – adoecida pelo trabalho dentro da água gelada do inverno. Ela falou de um cotidiano da pescaria que hoje é marcado pelo aparecimento de corpos de refugiados náufragos, devolvidos pelo mar Mediterrâneo. Esses eventos, que se tornaram frequentes entre o Norte da África e a Europa, obrigam pescadores da Tunísia a escolher entre seguir seu trabalho ou voltar à praia arrastando esses corpos e chorar sobre eles na areia – são jovens, são mulheres grávidas, são “a luz da Tunísia” que se perde – como lamentou a mulher indignada.
Ahmad Jaradad, integrante do Alternatives Palestine, chamou de loucuras globais as que estão destruindo a vida e a dignidade humanas, e que estão cobrando um enfrentamento duro. A Palestina ocupada é uma expressão cruel dessas loucuras que precisam ser barradas, que o direito internacional condena, mas que estão sendo estimuladas e protegidas não só pelo neoliberalismo e seus braços militares – alvos históricos do Fórum Social Mundial – , mas pelo crescimento da extrema direita no mundo.
Em 2015, uma missão solidária organizada no FSM partiu de Tunes para a Jordânia e de lá para a Palestina, para ouvir dos moradores, em cada canto da Cisjordânia: “contem ao mundo o que você viram aqui”. E isso porque a voz palestina é sufocada pela ocupação, que domina as narrativas na mídia ocidental, tratando cada agressão ao povo ocupado como direito de defesa do ocupante. De lá para cá, oito anos passados, a situação piorou, com a eleição de Trump nos Estados Unidos e planos americanos para a paz em Jerusalém, para os quais os palestinos também não foram ouvidos. O plano era justamente tirá-los de lá, transferir embaixadas e entregar a cidade inteira a Israel. Trump perdeu as eleições nos EUA, mas o avanço de Israel sobre Jerusalém e a toda Cisjordânia, com mais e mais assentamentos ilegais, demolições, expulsões e execuções, continuou, acelerado.
Dois dias de seminário foram dedicados ao trabalho de dois grandes grupos sobre o que precisa mudar no FSM, 22 anos depois de sua fundação em Porto Alegre. Enquanto o mundo enlouquece sob as garras de sistemas espoliadores, o FSM parece manter-se sereno demais em obediência à sua Carta de Princípios original.
Há tempos, a questão que pesa sobre o fórum é se o processo pode estar sendo represado ou esvaziado em seu potencial para um enfrentamento direto aos sistemas que sua carta condena. Como um sujeito político, o FSM poderia impulsionar alternativas mobilizadoras? Poderia expressar e convocar solidariedade ativa com os povos que sofrem?
Em poucas palavras: a carta fundacional do FSM protege sua diversidade barrando que alguém fale em nome do todo, e com essa pedra original sua principal instância deliberativa – o Conselho Internacional que facilita seus eventos centralizados – nunca mais se expressou em relação às conjunturas políticas. São as organizações que participam do FSM que se manifestam nele.
A solidariedade internacional, como uma malha de telefones sem fio fazendo resistência ao poderio das telecomunicações e plataformas digitais controladas, é o que faz a diferença para que a voz palestina seja ouvida.
E foi justamente a necessidade de elevar a voz da solidariedade que levou o Conselho Internacional do FSM a discutir alternativas ao próprio silenciamento e a dar mais um passo, ao discutir e “saudar” a proposta colocada a algum tempo em sua mesa. A de compartilhar a arquitetura do processo FSM com uma instância que possa emitir mensagens coletivas. Trata-se da nova “familia do FSM”, como foi chamada a estrutura proposta, no momento de aprovação por consenso.
Essa nova instância, que terá autonomia para organizar seus processos decisórios, ainda ganhará nome. Será uma assembleia e um espaço de solidariedade e ação, separada do Conselho Internacional, cuja tarefa continuará sendo de facilitar o FSM centralizado. A nova assembleia poderá organizar-se por meio de processos regionais ou mesmo em diálogo com os fóruns temáticos, que já produzem documentos e declarações. Poderá reavivar processos como o Fórum Social Mundial Palestina Livre, com assembleias que definam estratégias e ações possíveis de serem abraçadas pelo chamado processo global do FSM – e este inclui o próprio CI.
O alcance da proposta – que só se mostrará efetiva conforme avançar seu processo de construção – irá bem além de um caso específico. Deve direcionar-se para causas de interesse comum da humanidade – como o combate às crises climáticas e às guerras, a defesa das democracias na América Latina e aos direitos humanos no mundo. Mas em todos os aspectos, a Palestina se configura como uma causa global. Começa pela exigência de fazer valer o direito internacional do povo ocupado e responsabilizar o ocupante por seus crimes. Organizar-se a partir da Palestina e com seus ‘telefones sem fio” da solidariedade, para elevar sua voz através de uma instância unificada e mobilizadora na cena global, é um novo desafio para a causa no processo do Fórum Social Mundial.
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