Uma campanha presidencial em que a direita transformou em motivo de acusação a ajuda do Brasil a países vizinhos expõe a diferença das relações do maior e mais rico país da América do Sul durante os governos do Partido dos Trabalhadores sob a liderança de Lula e o governo da extrema direita liderado por Jair Bolsonaro.
Para ter melhor informação sobre isso, o livro de Celso Amorim, Laços de confiança – O Brasil na América do Sul , é um documento rico. Não se trata de literatura para distração nas férias, mas um livro para esmiuçar detalhes dos passos da diplomacia brasileira na região, através de breves e abundantes anotações de um chanceler em circulação. São 600 páginas de registros e de comentários, também breves, para contextualizá-las. O livro cobre 8 anos do trabalho de Amorim como chanceler, incluindo parte cumprida no governo de Itamar Franco, até a chegada de Dilma Rousseff, em 2011, quando foi nomeado ministro da Defesa.
Uma América do Sul integrada significava libertar-se da subserviência imposta pelos Estados Unidos e ganhar voz na relação com o mundo, na visão do Brasil. O peso da hegemonia do norte nos problemas dos países do sul se fez presente em muitas situações delicadas ou conflituosas com que Amorim se deparou. O próprio autor registra, em uma notinha de rodapé: “Como muitos leitores já terão percebido, os Estados Unidos são o ‘grande personagem’, nem sempre oculto, desta obra sobre as relações do Brasil com os demais países da América do Sul”.
Uma preocupação constante do Brasil, por exemplo, era sobre a possibilidade de uma base militar norte-americana no Paraguai, que precisava ser barrada. Em 2005, o Congresso paraguaio deu status diplomático a militares norte-americanos que participaram de treinamento conjunto, alegadamente com objetivos humanitários ou de combate ao terrorismo. Havia a suspeita em relação à pista de pouso no município de Mariscal Estigarribia, área de população rarefeita, que só se explicaria por uma possível estratégia político-militar dos EUA, pelo interesse na tríplice fronteira e no gás da Bolívia.
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Os esforços brasileiros pela integração regional , que levaram ao fortalecimento do Mercosul e à criação da Unasul, eram condizentes com a estratégia de investir nas relações Sul-Sul, na formação do Brics (Rússia, Índia, China, África do Sul), e nos diálogos da América do Sul com a África (ASA) e com o Oriente Médio (ASPA). Era um Brasil sem timidez ao meter-se em crises como a do Irã, ou de tomar partido – como ao lado dos palestinos.
O fator anti-imperialista estava presente e Amorim era reconhecido por levá-lo em conta. Por exemplo, em discussões sobre a tríplice fronteira Brasil-Argentina-Paraguai, um comunicado da época registra reuniões sobre o chamado “mecanismo 3+!”, sendo que o ‘+1’ era o governo dos EUA. O Brasil atuou para neutralizar esse fórum. Amorim diz que “não achava apropriado que Washington, à época voltada para ‘a guerra ao terror’, interferisse em questões regionais, inclusive sobrevalorizando ameaças que eu não percebia diretamente dirigidas contra nós”
Em uma das anotações de Amorim sobre a assembleia geral da OEA ocorrida na Flórida, Amorim relata que “os Estados Unidos, de maneira algo canhestra, haviam proposto uma declaração muito intrusiva sobre o monitoramento da democracia na América do Sul. Graças à resistência de alguns países, vocalizada sobretudo pelo Brasil, foi possível diluir consideravelmente a proposta, tirando-lhe os “dentes”, como escreve o diplomata. Na volta, Amorim viu sua foto na primeira página de alguns jornais brasileiros e uma das manchetes que destacava esse fato em particular: “Amorim repele intervenção americana”
Nada é tão linear no continente. Amorim lembra como o Chile, após vários governos influenciados pelo modelo neoliberal herdado de Pinochet e acordos bilaterais com os Estados Unidos, resistia a uma integração sul-americana. Houve inclusive uma tentativa frustrada da virada dos anos 90 de envolver o Chile em uma negociação 4+1 com os Estados Unidos, no contexto da Iniciativa para as Américas, lançada pelo presidente George Bush. Amorim recorda que, desse esforço de coordenação , resultou o próprio Mercosul, mas o Chile foi substituído pelo Paraguai. Somente em 1996, o Chile se tornaria membro associado do Mercosul.
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Para chegar a uma ação coordenada da América do Sul, o Brasil precisou trabalhar pela conquista de confiança e para mudar a imagem brasileira, que também era de um imperialista regional, como era a visão anterior da Venezuela, propagada também por uma intensa campanha empresarial do Paraguai. Amorim recorda que a Receita Federal brasileira queria construir um muro na fronteira com o país do Sul para evitar contrabandos. Ele imaginava comparações sendo feitas com o muro de Berlim ou com o muro construído por Israel para isolar os palestinos, se a ideia maluca não tivesse sido abolida.
Um sentido humanitário e afetivo perpassava as relações – como quando Lula pediu a Amorim para cuidar de ajudar a Bolívia, sensibilizado com a pobreza indigena. Em 1999, ainda no governo Itamar, a diplomacia brasileira estava às voltas com esforços para a libertação da brasileira Tãnia Vaz, presa política no Chile, e também a brasileira palestina Lamia Marouf, presa em Israel – assunto tratado em livro anterior de Amorim, Teerã, Ramalá e Doha. Memórias da Política Externa Ativa e Altiva, lançado em 2015
Acordos econômicos e de financiamento foram feitos, mas a ajuda do BNDS a uma obra no metrô venezuelano nem toma espaço no livro do chanceler. O assunto foi alvo de cobranças, à época, retomados novamente na campanha de 2022, denunciando que não houve igual financiamento para o Estado de São Paulo. O senador paulista Eduardo Suplicy chegou a fazer um pronunciamento da tribuna para explicar que o valor estava disponível mas o impedimento de recebê-lo era do próprio Estado paulista, pelo limite estadual de endividamento.
O uso do caso da ajuda à Venezuela, mais de dez anos depois pela direita brasileira, serviu especialmente para insuflar sentimentos xenofóbicos do eleitorado brasileiro. Mas as anotações de Amorim revelam relações de solidariedade crítica com o país vizinho, em que o Brasil trabalhava para ter a Venezuela integrada ao Mercosul. Chávez costumava ser polêmico no ambiente diplomático e isso merecia pequenas notas nos “diários” do chanceler brasileiro, como quando o venezuelano disse na tribuna da ONU que o presidente dos EUA exalava enxofre ou quando quis que a Cúpula da ASP assinasse uma condenação explícita à deposição de Saddam Hussein pela força, sendo que o sucessor de Saddam fazia parte da cúpula e não poderia concordar. Em outra ocasião, ao preparar-se para uma visita ao Irã, Amorim anota a preocupação de não ser confundido com as posições de Chávez, mesmo sendo um amigo do Brasil e uma figura conhecida e apreciada do mundo árabe, pelo papel da Venezuela na OPEP e pela forte condenação a Israel. Amorim recorda encontro com o ministro das Relações Exteriores da Jordânia, Salaheddin al-Bashir, que queria saber mais sobre o perfil de Chavez. Amorim fez comparações com Kadafi e provocou risadas do jordaniano.
Oriente Médio
O livro de Amorim é sobre a América do Sul. Mas a dinâmica das relações com o Oriente Médio sempre se faz sentir nas entrelinhas ou anotações mesmo que em registros de viagem a bordo de vôos de ida ou volta de algum país árabe ou preparando reuniões.. Em um desses momentos, está lendo o livro que ganhou de um diplomata sobre Ibn Battuta, viajante árabe do século XIV. Em outro, expressa o estômago virado porque teria de encontrar-se com o colega israelense. Ele registra “a bordo do Legacy, à altura do Equador: Amanhã, recebo o indigesto ministro de Israel Avigdor Lieberman”. Nada mais escreveu sobre o assunto. Mas Avigdor Lieberman, além alvo de investigação por suspeitas de fraude e lavagem de dinheiro, era morador de um assentamento ilegal na Cisjordânia e decidira viajar ao Brasil.
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O papel de Lula ao moderar a crise entre Equador e Colômbia, devido a uma operação mal explicada contra as FARC, interessou, por exemplo, ao presidente do Irã, Mahmoud Almadinejad. O iraniano buscou no Brasil ajuda para aproximação com a Argentina, que acabou recorrendo à Turquia para fazer a mesma ponte.
Da Argentina ao Caribe, da ASA à ASPA, Amorim mostra o quanto todas as decisões e crises da vizinhança afetam ou invocam posições do Brasil. O combustível dessas andanças diplomáticas é o sonho de uma América do Sul mais integrada e ciente de sua voz potencial na cena internacional. No lançamento do livro, em julho, o chanceler disse que hoje o mundo está mais difícil. É com esse mundo que ele está lidando agora como interlocutor de primeira hora de Lula sobre sua futura política internacional.