Portuguese / English

Middle East Near You

Soldados israelenses em Gaza ostentam má conduta

Palestinos, mutilados de corpo e alma

Abdullah Mukhaimar, jogador da Seleção Palestina de Futebol para Amputados [MEMO]
Abdullah Mukhaimar, jogador da Seleção Palestina de Futebol para Amputados [MEMO]

Karim se sentou na beira da cama, com a cabeça emoldurada pelos cartazes de futebol que cobriam a parede. Encarava com seriedade a folha de papel que segurava na mão. As dez coisas que quero ser na vida – havia escrito –, por Karim Aboudi, Apartamentos Jaffa, 15, Ramallah, Palestina. […] 1. Maior campeão de futebol do mundo (ao menos posso sonhar). 2. Supercharmoso, popular, bonito e alto (pelo menos 1,90 m, ou um pouco mais alto que Jamal). 3. Libertador da Palestina e herói nacional. 4. Famoso apresentador de televisão ou ator (o importante é que seja famoso). 5. O maior criador de jogos de computador de todos os tempos. 6. Eu mesmo, com permissão para fazer o que quiser, sem pais, irmãos mais velhos e professores na minha cola o tempo todo. 7. Inventor de uma fórmula ácida que derreta o aço reforçado usado em tanques e helicópteros de guerra (dos israelenses). 8. Mais forte que Joni e meus outros colegas (não é pedir demais). Parou e começou a roer a ponta da caneta. Ao longe, a sirene de uma ambulância chorava pelo ar da tarde.  (LAIRD, 2007)

Livro “Um pedacinho de chão: Adolescência, guerra e futebol na Palestina”, de Elizabeth Laird [Lucas Siqueira]

Livro “Um pedacinho de chão: Adolescência, guerra e futebol na Palestina”, de Elizabeth Laird [Lucas Siqueira]

Não deve haver no mundo um único menino que não tenha sonhado, ao menos uma vez na vida, em ser jogador de futebol, participar de uma Copa do Mundo e se tornar um herói nacional. Karim é um personagem fictício do livro “Um pedacinho de chão: Adolescência, guerra e futebol na Palestina”, de Elizabeth Laird. No livro, a autora descreve os sonhos de um menino palestino da cidade de Ramallah. No entanto, para meninas e meninos palestinos, esse sonho está mais distante que para qualquer outro; como descreve o personagem, antes, teriam que derreter o aço reforçado dos tanques e helicópteros do exército israelense.

Karim pode até ser o personagem de um romance. Contudo, seu nome pode ser trocado por muitos outros, até mesmo de gênero diferente, como a menina Mai al-Yazji, que joga em um dos times (mistos) financiados pela Associação Palestina de Futebol para Amputados, em parceria com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV). O nome Karim também pode ser substituído por Mahmoud Salah e muitos outros, nos quais talvez tenhamos histórias um pouco mais reais, mesmo que não sejam, nenhum pouco românticas.

Mahmoud Salah carrega o nome de um conhecido jogador de futebol egípcio. Quem sabe por esse motivo não perdia nenhuma partida com os amigos no campinho da cidade de Al-Khader, província de Belém. Em uma das partidas amadoras, um chute mais forte tirou a bola do campo. Mahmoud, que correu para buscá-la, caiu antes de alcançá-la. Aos 14 anos, Mahmoud Salah foi baleado por um soldado israelense. Além de balear uma criança com munição real, segundo o testemunho do próprio menino, os “dois soldados se aproximaram e me chutaram”.

Desacordado, o jogador mirim foi resgatado e levado para o hospital. Quando acordou, seu sonho de se tornar jogador, ir para a Copa e ser um herói nacional havia acabado. Sua perna esquerda não pôde ser salva: foi amputada abaixo do joelho.

Menino palestino de 14 anos têve a perna amputada depois que um soldado israelense atirou nele enquanto recuperava uma bola de futebol perto do Muro de Separação na Cisjordânia [paRh_Le / Twitter]

Mahmoud Salah é um entre os milhares de amputados palestinos. Segundo o Artificial Limbs and Polio Centre (Centro de Membros Artificiais e Poliomielite), apenas em Gaza há, conhecidos, 1.765 pessoas com membros amputados. Durante a Grande Marcha do Retorno (Gaza, 2018-2019), a Organização das Nações Unidas (ONU) confirmou que mais de oito mil palestinos desarmados foram baleados por munição real disparada pelos soldados israelenses, dos quais 148 casos resultaram em amputações de membros (122 amputações das extremidades inferiores e 26 amputações nas extremidades superiores). Destas vítimas, 69 eram crianças.

Amputações implicam em impactos que vão além da mutilação; elas acarretam também danos sociais e emocionais. Sendo assim, a reabilitação deve considerar o tratamento psicológico e a recuperação da autoestima do paciente. Em Gaza, a maneira encontrada para tratar a alma dos palestinos que perderam membros devido ao fogo israelense é o futebol. O menino Ibrahim Khattab perdeu a perna esquerda quando um míssil israelense atingiu o campo onde jogava futebol. Hoje joga em um dos times de amputados de Gaza. Ibrahim disse em uma entrevista: “Eu ficava em casa a maior parte do tempo, triste. Agora estou feliz, tenho amigos e jogamos futebol.”

Em 2019, com ajuda do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, a Palestina teve a primeira seleção composta inteiramente por amputados. Abdullah Mukhaimar é o mais jovem da equipe. Ele teve sua perna arrancada por uma bomba israelense, plantada no campo de futebol em que costumava jogar com os amigos. Hossam Abu Sultan é outro destaque do time. Antes de ter a perna arrancada por uma bala israelense, na Grande Marcha do Retorno, Hossan jogava no time mais popular de Gaza.

Seleção Palestina de Futebol para Amputados. Foto MEMO

Seleção Palestina de Futebol para Amputados. Foto MEMO

Este ano, a seleção composta por Hossam, Abdullah, Ibrahim e outras duas dúzias de pessoas amputadas participou da seletiva para Copa do Mundo de Futebol para Amputados, na Turquia. Devido às violações ao direito de ir e vir e aos ataques contra os territórios palestinos, a equipe foi prejudicada e não se classificou.

Voltando à ficção do livro “Um pedacinho de Chão”, o personagem Karim escreve ao final uma segunda lista, esta, sobre coisas que não queria para seu futuro.

  1. Comerciante, como Baba. 2. Médico, como Mama vive dizendo que eu devia ser. (Por quê? Ela sabe que eu odeio sangue.) 3. Baixinho. 4. Casado com uma garota como Farah. 5. Baleado nas costas e preso numa cadeira de rodas pelo resto da vida, como aquele garoto que estudava na minha escola. 6. Cheio de pintas, como Jamal. 7. Ter nossa casa esmagada por tanques israelenses e acabar em algum acampamento sinistro. 8. Ir para a escola. Nunca mais. 9. Viver sob ocupação. Ser parado o tempo todo por soldados israelenses. Viver assustado. Ficar trancado em casa. 10. Morto(LAIRD, 2007)

Não fosse por Israel, a Palestina talvez não tivesse um time de pessoas amputadas. E essas não são histórias de resiliência ou superação. Essas são histórias de crimes reais! Karim é um retrato real de muitos Mahmoud, Ibrahim, Abdullah e Hossam. O futebol não cura as feridas, mas ajuda os palestinos a sobreviverem a cada membros e sonhos arrancados pelo sistema colonial e de apartheid imposto pelos israelenses. Muitos desses jogadores palestinos, hoje, poderiam ser heróis nacionais, lutando no único campo aceitável para o mundo civilizado: o campo de uma partida de futebol.

LEIA: O treino da equipe nacional de Gaza para a Copa do Mundo de Futebol de Amputados

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

Categorias
ArtigoIsraelOpiniãoOriente MédioPalestina
Show Comments
Palestina: quatro mil anos de história
Show Comments