O Natal, comemorado e lembrado como o dia do nascimento de Jesus Cristo, em Belém, na Palestina, representa a data mais importante para cristãos de todo mundo. A cena deste nascimento foi reproduzida pela primeira vez por São Francisco de Assis, no século XIII, tornando-se um rito muito popular das decorações natalinas. No entanto, outra cena se reproduz diariamente com tamanha frequência que nossos olhos até se acostumaram. Seguindo a história bíblica, Herodes, rei que governava o território da Judeia, viu-se ameaçado pelo nascimento do menino Jesus e ordenou que os soldados assassinassem todos os bebês com menos de dois anos. Um anjo apareceu para José e mandou que fugisse com sua família para o Egito. Se não déssemos um rosto, uma história e uma documentação a Jesus, Maria e José, eles seriam nada mais que uma família de refugiados palestinos.
“E, tendo eles se retirado, eis que o anjo do Senhor apareceu a José num sonho, dizendo: Levanta-te, e toma o menino e sua mãe, e foge para o Egito, e demora-te lá até que eu te diga; porque Herodes há de procurar o menino para o matar. E, levantando-se ele, tomou o menino e sua mãe, de noite, e foi para o Egito.”
Mateus 2:13,14
O motivo que tornou Jesus, Maria e José refugiados é o mesmo para mais de cem milhões de pessoas no mundo contemporâneo: a luta por sobrevivência. Uma pessoa em condição de refúgio, em geral, fugiu de seu país de origem por medo, perseguição ou fatores que impõem risco a suas vidas. Embora na antiguidade esse termo não existisse, a ideia de dar abrigo a estrangeiros perseguidos em seu local de origem, era bem comum nos impérios Assírio e Hitita. Esse problema herdado da Antiguidade continua vivo e faz vítimas por todo mundo. No ano corrente, 2022, conforme relatório anual de “Tendências Globais”, mais de 103 milhões de pessoas não poderão celebrar o Natal com suas famílias e em suas casas, pois vivem sob a condição de deslocamento forçado. Este é o índice mais alto desde que o Alto-comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) passou a registrar os números de pessoas deslocadas em virtude de conflitos, perseguições ou mudanças climáticas. De dezembro de 2021 à data de publicação do relatório, o número de pessoas em situação de refúgio subiu de 25,7 milhões para 32 milhões, provenientes da Síria (6,8 milhões); Palestina (5,8 milhões) ; Venezuela (5,6 milhões); Ucrânia (5,4 milhões); Afeganistão (2,8 milhões); Sudão do Sul (2,4 milhões); e Myanmar (1,2 milhões). Somando apenas os refugiados sírios e palestinos, dois dos países de onde surgiu e proliferou o cristianismo, temos uma população maior que a da cidade de São Paulo — cidade mais populosa do Brasil.
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E se naquela época, o Egito possuísse um sistema tão rigoroso para controle de imigração como os que hoje possuem os países europeus? Bem provavelmente Jesus tivesse sido morto ainda bebê, como muitas crianças sírias que tentam atravessar o mar mediterrâneo. Em 2015, a foto de um menino sírio de três anos morto na praia de Bodrum, na Turquia, se tornou símbolo da maior crise migratória da história de nossa “desumanidade”. Aylan Kurdi e sua família tentavam chegar à ilha de Kos, na Grécia. No entanto, o bote precário naufragou matando 11 pessoas, incluindo seu irmão Ghalib, de apenas cinco anos, e sua mãe. O pai da família Kurdi foi o único sobrevivente.
A imagem de Aylan circulou como tentativa de conscientização para a crise humanitária. Talvez não tenha circulado tanto como deveria. No início deste mês, um drone da guarda-costeira da Turquia captou imagens de uma embarcação da Grécia “devolvendo” imigrantes ao mar. As imagens mostram agentes gregos transferindo os migrantes para um bote de borracha e abandonando-os a própria sorte. Ainda mais cruel é saber que essa não foi a primeira vez que a Grécia abandonou refugiados no mar. Em 2020, um levantamento do New York Times apurou que autoridades gregas abandonaram ao menos 1.072 imigrantes em alto mar. O jornal realizou sua investigação baseada em documentos e imagens captadas pela guarda-costeira turca, mas também com base em relatos de vítimas. Najma al-Khatib, professora síria de 50 anos, recordou ser apanhada por policiais gregos mascarados e jogada com outras 22 pessoas, incluindo dois bebês, em um bote com um colete salva-vidas completamente à deriva no Mar Egeu.
“Eu deixei a Síria por medo dos bombardeios – mas quando isso aconteceu, preferi ter morrido numa explosão.”
Najma al-Khatib, entrevista ao New York Times.
Estranho que os oficiais gregos tenham se atentado em deixar o colete salva-vidas. Com colete ou sem, as deportações são ilegais, cruéis, desumanas, além de configurarem crimes perante as leis da União Europeia e também violações aos direitos humanos. Só em 2022, a Grécia proibiu 150 mil imigrantes de entrarem no país, o que não quer dizer que tenha recebido bem os milhares que aceitou em seu território. Segundo a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), os refugiados aceitos são submetidos a um sistema que institui condições de vida desumanas, muito embora seja responsabilidade grega conduzir avaliações acerca da vulnerabilidade e oferecer cuidados adaptados a essas pessoas. Segundo a MSF, a “União Europeia e Grécia viram as costas para refugiados que chegam às ilhas gregas”.
“Nós vimos casos de superlotação intoleráveis, com 53 pessoas amontoadas em uma cela para seis. […] Tais condições são intoleráveis mesmo por uma só noite, principalmente para pessoas que já sofrem, psicologicamente e fisicamente, após fugirem da guerra. O pouco que recebem após uma jornada tão desgastante, é vergonhoso, além de perigoso para sua saúde.”
Kostas Georgakas, coordenador de MSF.
Os refugiados entrevistados pelo MSF reportaram pressão das autoridades gregas para voltarem à Turquia. Se o Egito tivesse devolvido Jesus ao território controlado por Herodes, como as autoridades gregas fizeram e continuam fazendo, hoje a Grécia sequer seria um país cristão.
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“No rosto dos famintos, dos sedentos, dos nus, dos enfermos, dos estrangeiros e dos prisioneiros, somos chamados a ver o rosto de Cristo que nos pede ajuda (cf. Mt 25, 31-46). Se pudermos reconhecê-lo naqueles rostos, seremos nós que lhe agradeceremos por neles ter podido encontrá-lo, amá-lo e servi-lo”.
Papa Francisco
Apesar de todas as dificuldades da imigração, a Sagrada Família conseguiu chegar ao Egito, onde permaneceram até a morte de Herodes. O mesmo não acontece com todos os que abandonam suas casas para procurar refúgio. Em agosto de 2022, uma embarcação que levava cerca de 80 pessoas com destino à Itália, naufragou no Mediterrâneo. Uma operação de resgate coordenada pela ACNUR conseguiu resgatar 29 sobreviventes na ilha de Karpatos. No total, a agência da ONU registrou mais de três mil imigrantes e refugiados mortos ou desaparecidos no Mediterrâneo no ano de 2021. Este ano, o registro foi de 945 mortos. No início de dezembro, o MSF conseguiu resgatar 90 migrantes no litoral da Líbia.
Os riscos da imigração não ocorrem somente no mar. Em outubro, uma equipe do MSF recebeu um alerta de recém-chegados à ilha grega de Lesbos, na Grécia, que precisavam de cuidados médicos urgentes. A equipe do MSF flagrou um grupo de 22 migrantes algemados e espancados. Infelizmente, tais crimes não acontecem somente em território grego. Outro governo criticado pelos atos de crueldade e crimes cometidos contra refugiados é o espanhol. Em junho deste ano, 23 imigrantes foram mortos ao tentarem chegar à cidade de Melilla (cidade espanhola no norte da África), outros 50 ficaram gravemente feridos.
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Todo país tem obrigação de garantir, preservar, e proteger os direitos humanos de todas as pessoas sob jurisdição, independentemente da nacionalidade. Os países devem assegurar a não repulsão de refugiados e requerentes de asilo de seu território e águas, garantindo que essas pessoas recebam tratamento desde sua chegada, incluindo acesso ao procedimento de asilo de forma eficiente e imparcial. Ainda mais especificamente a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu Artigo 14, reafirma: “Todo ser humano, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países”. Infelizmente não é desta maneira que reagem todos os países europeus, pelo menos não com todos os migrantes. Desde o início da guerra na Ucrânia, em fevereiro deste ano, o deslocamento forçado de pessoas foi o mais rápido desde a Segunda Guerra Mundial. Felizmente, os ucranianos foram recebidos em países europeus sem enfrentar as mesmas restrições que enfrentam os deslocados do Oriente Médio ou de países africanos, sendo ótimo por um lado, mas que, por outro, nos faz pensar como a discriminação eurocentrista discrimina até mesmo os refugiados.
Nem todos os países recorrem ao mesmo rígido e cruel sistema de controle de imigração. Os dados registrados no “Tendências Globais” do presente ano indicam que diversos países ainda recebem e acolhem pessoas em situação deslocamento forçado. Um fenômeno interessante a ser observado é que quatro entre os cinco países que mais acolheram refugiados são países em desenvolvimento — em outras palavras, países pobres —, como a Turquia, que sozinha acolheu 3,7 milhões de pessoas.
O cenário, que parece ruim, ainda tem muito a piorar. Segundo especialistas, o número de refugiados, agravados ainda pelas mudanças climáticas, poderá dobrar para 216 milhões de pessoas até o ano de 2050. O refúgio é a busca por esperança, por sobrevivência, bem como fez José para proteger sua Sagrada Família. Quando uma pessoa opta pelo deslocamento de sua terra natal, é por ser a única opção que encontrou para proteger a sua vida e de sua família, mesmo sabendo que chegar a outro país é somente um recomeço. Quando escolhi a palavra presépio para ilustrar a maior crise humanitária de nossa geração, tinha em mente que a palavra derivada do latim “praesepium” significa apenas curral, cercado onde se guardam animais. Jesus, antes de se tornar refugiado, nasceu em uma manjedoura – nome bonito para curral –, atualmente, no entanto, a situação se inverte: os refugiados são tratados como animais, jogados em currais, quando não levados diretos ao abate; tudo isso, pelas mãos de homens que se dizem cristãos.
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