Quando os Estados Unidos decidiram retirar suas tropas do Afeganistão, em 2021, prometeram resgatar os que quisessem sair de lá. E o mundo viu jovens despencando de uma decolagem cruel, com os últimos que tentavam o embarque agarrados à porta da aeronave, do lado de fora.
O Brasil de Jair Bolsonaro não mandou aviões, mas acenou com um grau de generosidade ou responsabilidade que seu governo não tinha. O resultado foi outro nível de crueldade. Em setembro de 2021, publicou uma portaria interministerial autorizando o visto temporário e a autorização de residência por razões humanitárias para os deslocados do Afeganistão. Mas sem tomar providências para receber os que chegassem, mesmo com essas permissões nas mãos..
2022 foi o ano em que famílias e grupos de afegãos passaram a se aglomerar no aeroporto internacional de Guarulhos, acampando em barracas armadas entre carrinhos de bagagens e cobertores de avião.
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Sem saber o idioma, sem recursos, e sem destino certo no país, grande parte dos que chegavam e parou ali, à espera da continuidade da recepção prometida. Segundo o Itamaraty, foram autorizados 6,1 mil vistos.Muitos homens jovens, mas também mulheres, algumas grávidas ou com crianças, muitas ainda de colo, fizeram uso deles.
Quando um país assina um tratado internacional, assume responsabilidades. No caso do acordo sobre os refugiados que fogem de um comprovado sofrimento e risco, o país anfitrião não pode oferecer em troca outro sofrimento em risco.
No meio do ano, o procurador da República Guilherme Göpfert divulgou uma nota para alertar que “a acolhida não pode se resumir na emissão de vistos humanitários”. É dever do Estado brasileiro, nos três níveis da federação, empreender todos os esforços para o cumprimento das garantias constitucionais e de tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, que garantam meios dignos de acolhimento e posterior integração à sociedade brasileira”.
Por uma década, até 2021, a nacionalidade com maior número de pessoas refugiadas reconhecidas,segundo a Acnur, era a venezuelana (48.789), seguida dos sírios (3.682) e congoleses (1.078). Os afegãos devem mudar a balança. Levantamento feito a pedido do ‘Estadão’ pelo Observatório das Migrações Internacionais aponta que 3,4 mil imigrantes afegãos entraram no País de janeiro a outubro
Desses, 100 ainda estão no Aeroporto.
A voluntária Swany Zenobini tornou-se uma voz conhecida por mobilizar algum alívio às famílias frente à ajuda deficitária do Estado. Em um desabafo publicado no jornal Folha de S. Paulo, ela relatou a hostilidade de um ambiente que fica 24 horas com as luzes acesas e aciona o sistema de som a cada 30 minutos.
Para os que não conseguiram ser encaminhados para abrigos de São Paulo, hotéis ou casas de conhecidos, a Prefeitura de Guarulhos oferece alimentação, água e cobertores..
Reportagens de TV mostraram um pouco desse cotidiano em que o direito ao banho é apenas semanal, mas o assédio de evangélicos tentando converter muçulmanos à sua bíblia era constante.. O medo aumentou em dezembro, quando dois afegãos, uma mulher de 64 anos e um homem de 21 testaram positivo para covid-19 e precisaram ficar em isolamento em um posto de saúde.
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Um desastre sem final a vista
Há três meses, o ex-chefe do Comando Central estadunidense, general Frank Mackenzie, admitiu que a missão militar no Afeganistão foi um fracasso para quatro governos estadunidenses. Foram 20 anos tentando impor um modelo ocidental de democracia armada para o povo das montanhas. O Afeganistão é um país de pouco mais de 32 milhões de habitantes, dos quais a imensa maioria é de camponeses e uma minoria vive nas cidades.
O ex-presidente dos EUA, Barak Obama, conta em seu livro “ Uma terra prometida”, como a CIA, em 1980, armou grupos afegãos contra a ocupação soviética, e que parte deles, depois, formaria a Al Qaeda, que agora os EUA alegavam estar no afegão para combater.
A volta do Talibã em 2021 desencadeou a fuga de pessoas que se sentem expostas, ameaçadas ou não mais se adaptam aos padrões de controle impostos ao país. E as que mais sofrem nesse contingente são as mulheres que querem liberdade para estudar e trabalhar.
Neste mês de dezembro, o governo afegão proibiu de vez que as meninas se matriculem na universidade. Muitas haviam feito as provas de acesso e agora se vêem impedidas de frequentar as aulas. Significa que mais mulheres podem tentar escapar das regras fundamentalistas buscando refúgio em outros países. Significa que 2023 pode ser um ano de novas levas chegando ao Brasil. E que o novo governo no país precisará definir logo suas políticas para os que continuam perdidos no aeroporto e para as mulheres, homens e crianças que ainda virão.
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