Göreme, Capadócia, Turquia, 5 de janeiro de 2022
Acordamos com a primeira oração que soava da mesquita, antes do sol nascer. Nossa esperança era tomar um café assistindo ao espetáculo dos balões da Capadócia. Mas não foi dessa vez! Os termômetros marcavam -4 °C e a neblina não permitia ver um palmo à frente do rosto. Dadas às condições, não teve balões!
Como programado, mesmo sem vê-los, saímos para uma trilha – uma não, duas: Rose Valley e Red Valley. Entre o frio, a neblina e a neve acumulada da madrugada, caminhamos sem pressa e fazendo muitas fotos pelo caminho; não tantas quanto eu gostaria, pois algum dispositivo da minha lente acabou congelando – junto, congelou meu coração.
A Di fez a programação do tour e nesse tipo de ocasião eu me viro bem como navegador, basta baixar alguns mapas e caminhar na linha azul. Após uma hora de caminhada chegamos ao Rose Valley. Não sei se foi a neblina, mas não consegui distinguir onde acabava o Rose Valley e onde começava o Red Valley. Andamos algumas horas por entre subidas, descidas, terra e gelo, até que finalmente chegamos à primeira chaminé de fada.
Andando mais um pouquinho, encontramos escavado na pedra uma igreja cristã. Sim, uma igreja cristã sabe-se lá de que época. A igrejinha é obviamente simples, mas chama atenção pelas pinturas no teto e nas paredes – uma mistura de estilo copta com bizantino, ao menos em nosso ponto de vista leigo. As imagens estão bem deterioradas, o que torna impossível apreciar a obra por completo. Arrisco dizer que além dos anjos e arabescos, alguns ícones relatam a passagem simbólica dos apóstolos Paulo e Pedro pela Turquia.
E sucedeu que, enquanto Apolo estava em Corinto, Paulo, tendo passado por todas as regiões superiores, chegou a Éfeso [Turquia]; ali encontrou alguns discípulos.
Atos 19:1
Entre um caminho e outro, encontramos mais igrejas escavadas nas rochas. Somente na região da Capadócia, existem cerca de 600 delas. Uma em particular nos impressionou bastante, por ter uma cruz esculpida no teto, muito bem preservada apesar dos séculos.
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Não vou me atrever a falar muito das igrejas, pois esta é uma história que demanda estudo aprofundado, abordá-las aqui, apenas nos deixaria ainda mais confusos. Para ilustrar um pouco do que vimos, deixamos um pouco do que nossos olhos e lentes captaram.
Para alguns, pode ser uma novidade falar de cristianismo na Turquia. Por isso, escolhemos a história do mais célebre cristão turco para destacar um pouco da relevância do país na formação do cristianismo.
Jorge nasceu na Capadócia, mas seu nome se difundiu no mundo todo. Hoje, é reverenciado para além do catolicismo apostólico romano. Jorge é considerado um dos santos mais venerados do mundo. São Jorge, segundo a tradição, foi o soldado do exército romano que matou o dragão. Até aqui, acho que todos conhecem a história, mas vamos um pouco mais além.
Após a morte de seu pai em batalha, Jorge mudou-se com sua mãe para Lida, na Palestina – cidade que, ocupada por Israel durante a Nakba ou “catástrofe”, em 1948, passou a se chamar Lod. Na adolescência, Jorge entrou para e exército romano, no qual foi rapidamente ascendendo de posto. Quando sua mãe faleceu, o militar, já de alta patente, resolveu doar toda fortuna aos pobres, revelando ao Império Romano sua verdadeira devoção.
Na época, Roma ainda era pagã. Em 303 d.C., o imperador Diocleciano (284 – 305 d.C.) decretou a prisão de todos os soldados romanos que professassem a fé em Jesus Cristo. Jorge objetou diretamente ao imperador e declarou-se publicamente cristão. Mas Jorge era consagrado como um dos melhores tribunos de Roma – isto é, agente público. O imperador tentou dissuadi-lo, ao lhe oferecer terras, dinheiro e escravos, mas encontrou apenas a abnegação e uma fé irredutível do bom soldado. Jorge foi preso, torturado e, enfim, no dia 23 de abril de 303 d.C., decapitado.
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A história do jovem mártir em defesa da fé em Cristo ganhou notoriedade na Palestina, incluindo entre outros soldados romanos que se rebelaram e se converteram. Mesmo a esposa do próprio imperador se converteu ao cristianismo, tocada pela história de Jorge da Capadócia.
“E onde está o dragão nessa história?”, pode nos perguntar o leitor. Bem, a historiografia de São Jorge é baseada em documentos seculares e apócrifos e pela tradição oral contada de geração após geração. Boa parte do relato pode ser considerado mítico ou místico – o que não quer dizer que não tenha credibilidade, afinal, elementos místicos e míticos nos ajudam a compreender a realidade. O dragão, portanto, é interpretado por teólogos como o mal que tenta destruir a fé.
Então entra a deturpação da narrativa. Por muito tempo – e ainda hoje, para alguns –, o dragão simbolizou a luta do cristianismo contra os muçulmanos, quando, na verdade, foi o exército de Roma que guerreou contra os povos de quase todo o Oriente – incluindo árabes –, o que nada tem a ver com fé ou religião.
Para relembrar alguns termos, volte em nosso segundo episódio da série: Kadiköy, o mercado de pulgas de Istambul.
Quanto a afinidades e diferenças entre judaísmo, cristianismo e Islã, deixo o assunto para quando passarmos por Hebron (Al-Khalil), na Palestina ocupada. Por hora, gostaria de deixar uma reflexão, nada teológica: se os antigos cristãos que habitavam essa terra foram embora ou se converteram ao Islã, quem foi que preservou as 600 igrejinhas da Capadócia cristã?
Por muito tempo, sobretudo após os atentados de 11 de setembro de 2001, os muçulmanos sofreram com o preconceito. Preconceito que se origina do medo; por sua vez, nascido daquilo que não conhecemos. Jorge da Capadócia era cristão, foi torturado e morto por romanos pagãos, que depois se converteram e canonizaram o soldado que eles próprios executaram. São Jorge morreu em 303 e jamais lutou contra nenhum muçulmano – afinal, o Islã nasceu em 570 d.C.
O Ocidente, de modo geral, pouco sabe sobre os muçulmanos, mas os trata com preconceito e discriminação. São Jorge morreu em defesa da fé. Porém, retratado com a pele clara, em um cavalo “branco” e com uma armadura reluzente, não é visto como “terrorista” ou “extremista”. De fato, muçulmanos e cristãos já viveram suas crises e confrontos na Turquia. Por conta dos efeitos colaterais da Primeira Guerra Mundial, cristãos – mesmo nascidos na Turquia – eram tratados pelo Império Otomano como estrangeiros e dependiam do suporte da Igreja Ortodoxa Grega e Armênia para subsistir. O atual governo turco prega um regime secular. Naturalmente, no entanto, ainda há problemas a serem resolvidos.
De todo modo, muçulmanos e cristãos lutam para defender sua fé e sua liberdade religiosa –direito inerente a todo ser humano, que deve ser garantido e protegido conforme a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Depois de uma caminhada de seis horas, conversando com a Di – por sinal, devota de São Jorge desde sua visita à igreja dedicada ao santo-guerreiro no Cairo –, atrevo-me a dizer que, caso estivesse vivo hoje, Jorge da Capadócia defenderia com afinco os direitos de todos os povos, sobretudo seus irmãos muçulmanos, que por tanto tempo ajudaram a preservar a história do santo cristão.
Gostaria de dedicar esse texto e a frase abaixo à amiga S. A. Matos!
“É justamente a possibilidade de realizar um sonho que torna a vida interessante.”
O Alquimista, Paulo Coelho
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Nota: Todos os textos do Mochilão MEMO são produzidos em trânsito; por gentileza, peço que compreenda que pode haver falhas ou erros que serão corrigidos ao longo da viagem. Obrigado a todos pela compreensão.