Mochilão Memo: Democracia, um colete salva-vidas

Izmir, 9 de janeiro de 2022

Gostaríamos de abordar outro assunto, porém, desde que chegamos em Izmir, não conseguimos nos concentrar em outra coisa senão o ataque terrorista contra a democracia brasileira. Vimos pela televisão da Turquia, cenas de nossa pátria vandalizada e violentada. Aqui, as notícias circularam pela manhã como “tentativa de golpe contra a democracia no Brasil” – estar em Izmir e ouvir falar em golpe contra democracia brasileira é, no mínimo, deprimente. Não sei se é de conhecimento dos terroristas brasileiros, ou se eles apenas não se importam de depredar nossas instituições democráticas, ao passo que mais de cem milhões de pessoas fugiram de suas casas para encontrar somente um pouco do que temos.

Assim que começamos a descer a rua Konak, a primeira coisa que vi, foi uma loja com coletes salva-vidas. Eu e Di sabíamos o motivo para tantos coletes pendurados em destaque em diversos estabelecimentos. A crise dos refugiados, a maior da história, está evidenciada em Izmir pelos coletes salva-vidas expostos nas vitrines das ruas comerciais.

Hoje, quando fomos até Alaçati, cidade anterior à Çesme, fiquei pensando como é fácil, barato e seguro para qualquer turista chegar à Europa Ocidental. Do bairro Konak, saem ônibus com translado em balsa que levam direto para ilha de Lesbos, na Grécia; ainda mais perto, é possível pegar um ônibus no Otogar (rodoviária) ao lado do Istinye Park – como fizemos para ir à Alaçati – e seguir para cidade de Çesme por 70 liras turcas (cerca de R$ 20,00). Çesme fica a somente 18 quilômetros da Ilha grega de Chios. No entanto, isso é, como disse, apenas para os turistas. Para os refugiados ou migrantes, a travessia da Turquia rumo às ilhas gregas é feita clandestina, com alto índice de mortalidade e risco de ser devolvido ou abandonado pelas autoridades gregas à deriva, em alto-mar. Por este motivo tornou-se lucrativo vender coletes salva-vidas próximos aos aparelhos eletrônicos. Poucos dias antes de chegarmos aqui, em dezembro de 2022, a guarda costeira turca resgatou mais de 200 refugiados no mar Egeu. Uma operação em Izmir encontrou 61 imigrantes à deriva, rejeitados pela Grécia. A cidade de Izmir, para alguns, tornou-se uma passagem obrigatória; para outros, abrigo temporário. Infelizmente, no entanto, para tantos outros, Izmir se tornou o ponto final.

No último artigo que publiquei antes deste Mochilão – Neste Natal, mais de cem milhões de pessoas formam o maior presépio vivo da história –, escrevi que mais de 103 milhões de seres humanos fugiram ou foram expulsos de suas casa. O que eu não sabia é que grande parte dessa população passou ou se estabeleceu em Izmir. Segundo o último relatório de Tendências Globais do Alto-comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), a Turquia recebeu sozinha 3.7 milhões de refugiados, o país que mais acolheu pessoas em condições de vulnerabilidade.

LEIA: Mochilão MEMO: Terra dos belos cavalos

Izmir se tornou um dos principais pontos de trânsito dos refugiados que visam entrar na Europa via mar Egeu. Em 2014, o bairro de Basmane – a metros de onde estamos hospedados – tornou-se centro de tráfico de pessoas. Os contrabandistas, além de realizarem os translados ilegais, forneciam transferências bancárias, chips de celular e, naturalmente, coletes salva-vidas. Porém, muitas pessoas, impossibilitadas de pagarem os custos altos do contrabando, acabaram se estabelecendo na cidade, dando prioridade aos bairros de Basmane e Konak por ficarem próximos a rotas de metrô, ônibus e barco. Os impactos causados pela onda migratória, agravada pela guerra civil na Síria – e seus 6.8 milhões de refugiados –, atingiu praticamente todos os setores de Izmir.

Nos bairros de Basmane e Konak, a presença de migrantes se tornou tão sólida que até mesmo a comida de rua se adaptou. Atravessando a rua, bem de frente ao hotel, comemos um delicioso shawarma em uma lanchonete de sírios originários de Aleppo e Damasco.

Nas ruas, é visível o grande fluxo de migrantes: além de sírios, encontra-se também afegãos e pessoas dos mais diversos países africanos. Diferente do que vimos no primeiro dia em Istambul, aqui em Izmir encontramos pessoas em situação de vulnerabilidade pelas ruas, mesmo que não exista muitos obstáculos formais para emprego ou estudo. Há ainda, para essa população, acesso aos mesmos serviços de saúde fornecido aos turcos, bem como outras assistências específicas de ongs internacionais.

A Turquia, não é um paraíso para os refugiados. Na verdade, o grande fluxo se deve às fronteiras com Síria, Iraque e Irã, do qual derivam um vasto número de migrantes.  Quando citei, na introdução deste texto, que “estar em Izmir e ouvir falar em golpe contra democracia brasileira é no mínimo deprimente”, estava pensando nos 3.7 milhões de pessoas refugiadas na Turquia e nos outro 99 milhões pelo mundo que fugiram de seus países de origem por medo, perseguição ou outros fatores de risco a suas vidas. Todas essas pessoas fugiram de países onde a democracia faleceu, dando lugar ao fascismo e regimes totalitários. No Brasil, mesmo que imperfeita, ainda temos uma democracia almejada por todas essas pessoas.

Quando passei pelos coletes salva-vidas pendurados, tive um triste sentimento de que falhamos como humanidade, ao ponto de permitir que mais de cem milhões de outros seres humanos dependam de ajuda humanitária para sobreviver. Por outro lado, após uma reflexão mais detalhada, lembrei que esses coletes salva-vidas ajudaram centenas, talvez milhares de sobreviventes, apenas no mar Egeu. Lembrei que para milhares de pessoas, esses coletes servem com última gota de esperança em um gigantesco oceano. Para nós, brasileiros, a democracia é nosso colete salva-vidas – cabe a nós, agarrar-se ou se jogar à deriva.

LEIA: Mochilão MEMO: O espetáculo dos balões

Não deixe de seguir Mochilão Memo pelo www.monitordooriente.com e @dianaemidio, @lucassiqueira e @monitordooriente no Instagram! Até breve!

Nota: Todos os textos do Mochilão MEMO são produzidos em trânsito; por gentileza, peço que compreenda que pode haver falhas ou erros que serão corrigidos ao longo da viagem. Obrigado a todos pela compreensão.

Sair da versão mobile