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‘Mulheres curdas se rendem ao desespero’, diz enfermeira reconhecida por lista de personalidades da BBC

Nigar Merf, enfermeira-chefe do Hospital de Queimaduras e Cirurgias Reconstrutivas de Sulaymaniyah, norte do Iraque

“A parte mais difícil do trabalho é quando encaro mulheres forçadas a mentir sobre a causa de suas queimaduras, porque sentem sua vida ameaçada por maridos ou familiares”, reitera Nigar Merf, enfermeira-chefe do Hospital de Queimaduras e Cirurgias Reconstrutivas de Sulaymaniyah, no norte do Iraque, uma das três províncias do Curdistão iraquiano, com uma população de 1.7 milhão de pessoas. “No entanto, o cheiro de óleo delata a verdade”.

Celebrada como uma das cem mulheres mais influentes do planeta em 2022, conforme lista da rede britânica BBC, Marf (50) devotou a carreira a ajudar mulheres vitimadas por queimaduras graves, que demandam tratamento médico extensivo.

No Curdistão iraquiano, a prática brutal da autoimolação tornou-se assustadoramente comum; as taxas de mortalidade dentre as vítimas de queimadura procedente desses atos de desespero são extremamente altas. Como principal forma de suicídio dentre mulheres curdas, trata-se de uma espécie de protesto pessoal, em última instância, mas cujas sobreviventes têm de carregar cicatrizes em seus rostos e corpos por toda a vida.

Após tratar e conversar com inúmeras vítimas, que compartilharam relatos de dor, no decorrer de quase uma década, Nigar constatou que o suicídio por autoimolação passou a ser visto como única maneira de escapar de maridos e parentes abusivos.

Na sociedade patriarcal, que se radicalizou conforme os conflitos no norte do Iraque, observou Nigar, as mulheres carecem de direitos, costumam ser analfabetas e não têm a quem recorrer e pedir socorro, mesmo após o grito desesperado materializado na autoimolação. As mulheres – mesmo as sobreviventes – temem retaliação e maior violência por parte dos abusadores.

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Sobre o sofrimento de suas pacientes, comentou Nigar: “As mulheres curdas ateiam fogo em si mesmas por causa do desespero e se rendem à morte em meio à sociedade ultraconservadora. Essas mulheres vivem sob um regime patriarcal autoritário; por vezes, são queimadas vivas por homens de sua convivência, sob o pretexto de honra”.

“No entanto, muito embora ainda haja casos de autoimolação, a porcentagem de mulheres que ateiam fogo a si próprias caiu por causa de esforços de conscientização e emancipação, ao ter seus problemas pouco a pouco resolvidos por meio da lei e dos tribunais”.

No Iraque, a violência de gênero cresceu 125% e alcançou o índice de 22 mil casos entre 2020 e 2021, conforme o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), que reafirmou “o aumento preocupante nos casos de depressão e suicídio entre mulheres e meninas”.

Alguns médicos calculam que a autoimolação ceifou dez mil vidas desde 1991, quando a região conquistou autonomia, mas dados confiáveis são escassos devido ao fato de que muitas vítimas sequer chegam ao pronto-socorro. Há certamente subnotificação, confirma Nigar.

Nigar Merf, enfermeira-chefe do Hospital de Queimaduras e Cirurgias Reconstrutivas de Sulaymaniyah, norte do Iraque

A maioria dos suicídios dentre as mulheres curdo-iraquianas ocorre em casa, onde têm acesso a líquidos inflamáveis, como querosene. Além disso, é comum que lares abusadores escondam as vítimas e tentem tratá-la com métodos primitivas, para evitar investigações da polícia.

“O caso mais assombroso com que lidei foi de uma paciente que derramou óleo sobre si mesma no meio de uma briga com o marido, sob enorme opressão. Em um momento de desespero, ela pôs fogo em si própria”, relembrou a enfermeira. “O marido ficou parado, rindo e filmando seu corpo tragado pelas chamas até que vizinhos vieram socorrê-la e cobri-la com um cobertor. Ela sofreu queimaduras de terceiro grau na face, no pescoço, no tórax e nas pernas. Foi tudo muito cruel; suas feridas e seu pranto estão comigo para sempre”.

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Para que haja mudanças de longo prazo, destacou Nigar, mulheres curdas demandam espaços voltados a construir sua independência e autoconfiança, para que não sucumbam a pressões da comunidade, em geral, e de seus familiares, em particular. A forma mais eficiente de conquistar isso, acredita a enfermeira, é via educação de gerações atuais e futuras, sobre a importância da igualdade de gênero e dos direitos humanos universais.

“Precisamos educar aquelas em risco de sofrer tais destinos como aqueles propícios a impô-los sobre as mulheres”, sugeriu a enfermeira. “É essencial que todos saibam que ninguém é melhor que ninguém e que não existe essa coisa de mais forte ou mais fraco”.

Nigar reconhece que algumas pacientes a deixam sem palavras, para tentar confortar tamanho trauma, tanto físico quanto mental. Entretanto, prefere crer que o tratamento tem um impacto positivo na envergadura psicológica e emocional das vítimas. Ao ouvir e aconselhar caminhos, a enfermeira tornou-se mais e mais determinada em ajudar mulheres e lutar por uma sociedade mais igualitária, onde todas possam se sentir seguras e emancipadas. Nigar Marf se diz, apesar dos pesares, bastante otimista.

Por seu trabalho extraordinário e compromisso com sobreviventes de autoimolação e com sua comunidade no Curdistão iraquiano, a enfermeira foi consagrada na lista de cem mulheres mais influentes e inspiradoras do mundo, segundo a rede BBC, para 2022. Trata-se do décimo ano da lista, segundo o qual a BBC aproveitou o marco para “explorar o progresso feito nesta década”, mas observou: “Muito embora, houve grandes avanços nos direitos das mulheres – do número de líderes femininas do movimento MeToo, por exemplo –, para mulheres em muitos cantos do planeta, ainda há um longo caminho a percorrer”.

Nigar é acompanhada pela primeira-dama ucraniana Olena Zelenska, por seu trabalho em meio à invasão russa do país vizinho, pela tenista tunisiana Ons Jabeur, primeira atleta árabe-africana a chegar às finais do Grand Slam, e pela atriz e produtora de Bollywood, Priyanka Chopra Jonas.

“Fiquei surpresa e contente porque nós, mulheres curdo-iraquianas, vivemos e testemunhamos um verdadeiro ciclo de injustiça e opressão há anos”, concluiu Nigar. “Ver nossos esforços para construir uma sociedade mais cidadã e democrática sendo celebrados é inspirador. Precisamos continuar adiante e fazer muito mais”.

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