Mochilão MEMO: As cores de Balat

Caminhamos ao amanhecer cruzando a ponte entre os pescadores do Corno de Ouro. Hoje foi dia de ver as cores de Balat, o bairro mais colorido de toda Istambul. Em Balat, o triste se alegra, a destruição ganha vida e o feio se transforma no incrível.

Mesquita Yavuz Sultan Selim Camil, em Istambul, Turquia [Lucas Siqueira/MEMO]

Após uma hora de caminhada, encontramos as primeiras casas otomanas de fachadas coloridas. As flores nas janelas eram cada vez mais constantes, até que o sol resolveu aparecer – embora tímido – para esquentar um pouco o dia. Antes de chegarmos às ruas almejadas pelos fotógrafos, passamos pela Mesquita Yavuz Sultan Selim Camil, um complexo otomano do século XVI localizado em uma das sete colinas de Istambul. Assim que entramos, percebemos que era o momento de oração e que a mesquita estava lotada. Por isso, escolhemos apreciar a construção somente pelo lado de fora. Não que houvesse alguma restrição a nossa presença; na verdade, foi uma senhora muçulmana que nos indicou cortar caminho pelo pátio da mesquita em direção ao Balat, mas não achamos respeitoso abusar da hospitalidade e incomodar a prece.

Escola Ortodoxa Grega Ferner Rum Kiz Lisesi, em Istambul, Turquia [Lucas Siqueira/MEMO]

Passando pela mesquita, foi possível enxergar o Corno de Ouro e o imponente edifício da escola grega que se destaca entre construções menores. A Fener Rum Kız Lisesi é uma escola ortodoxa grega ainda mais antiga que a mesquita de Sultan Selim, datada do século XV. A escola foi construída para os habitantes gregos da época. Atualmente, a escola permanece ativa e segue como uma das instituições educacionais mais prestigiadas da cidade. Ao lado do colégio, está a Igreja Ortodoxa de Santa Maria dos Mongóis, a igreja mais antiga de Istambul.

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Em Balat, também se encontra a sinagoga mais antiga da cidade, a Ahrida. No século XV, o sultão Bayezid II ofereceu cidadania a uma grande população de judeus perseguidos pelos cristãos na Espanha e no Norte da África. Vale destacar, a perseguição aos judeus não começou com Adolf Hitler – assunto que vamos abordar nos próximos dias. O sultão doou terras aos refugiados judeus no bairro de Balat, que ali se estabeleceram, e suas famílias se multiplicaram. Atualmente, há poucos judeus no bairro: desde 1950, os judeus começaram a emigrar de Balat para outros bairros e alguns foram se assentar no recém-autoproclamado Estado de Israel – assunto que também tem data e hora marcada para falarmos mais tarde.

Como dissemos em nossa introdução: “Em Balat, o triste se alegra, a destruição ganha vida e o feio se transforma no incrível” – não sem motivo. As coloridas ruas do bairro mais alegre de Istambul passaram, no passado, por diversos episódios de violência, morte e massacres.

No início da decadência do Império Otomano, em 1810, os judeus do bairro investiram contra tropas de janízaros a serviço do sultão – isto é, unidade de elite do exército otomano. O estado decidiu prender e executar alguns dos responsáveis para servirem de exemplo. Posteriormente, no contexto da Primeira Guerra Mundial, ocorreu ainda o genocídio armênio. A comunidade armênia ocupava então uma posição de destaque na sociedade otomana. Com as sucessivas perdas militares na Grande Guerra, os governantes otomanos passaram a temer uma rebelião e uma subsequente insurreição por independência; assim, decidiram pela deportação em massa. Estima-se que 800 mil a 1,2 milhão de armênios foram enviados ao deserto sírio, privados de comida e água.

A derrota na Primeira Guerra Mundial levou à queda do Império Otomano e à ascensão do movimento turco nacionalista, que buscava a independência do país. Durante a guerra, os turcos promoveram um processo de limpeza étnica também contra cristãos sírios e ortodoxos gregos, tornando a Turquia uma etnocracia. O governo turco nega até hoje o processo de limpeza étnica promovido contra os armênios, sírios e gregos, ao alegar que a deportação em massa foi um processo legítimo. No entanto, no último ano, trinta e três países reconheceram o episódio como genocídio.

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A Turquia, assim como qualquer país, tem um passado e episódios difíceis de serem lembrados – porém, ainda mais difíceis de serem esquecidos. Em Balat, muitas lágrimas e sangue foram derramados. Contudo, ainda hoje, os habitantes do bairro insistem em colorir e decorar as ruas com a esperança de criarem memórias melhores para a próxima geração. Um exemplo disso é o trabalho do Mink Kalpler Çucuk Iyilik Ve Asevi, uma casa onde mais de 60 crianças são atendidas sem distinção de etnia, cor ou religião. Crianças de diferentes idades tomam café da manhã, almoçam e têm aulas sobre vários assuntos, com a ajuda de voluntários de todos os cantos da Turquia e de outros países, que vêm até Balat para conhecer este trabalho. Kalpler Çucuk é uma escola de tempo integral, onde as crianças aprendem e socializam enquanto os pais trabalham.

Neste mundo, não há lugar perfeito ou história imaculada – todos temos passado. Alguns, um tanto mais sombrios. Todavia, o que nos ensina o bairro de Balat é que dar cores à vida é uma excelente forma de recomeçar.

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Nota: Todos os textos do Mochilão MEMO são produzidos em trânsito; por gentileza, peço que compreenda que pode haver falhas ou erros que serão corrigidos ao longo da viagem. Obrigado a todos pela compreensão.

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