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A bandeira palestina e o fim do mito da democracia israelense

24 de janeiro de 2023, às 11h35

Bolsonaristas em frente ao Palácio do Planalto, na véspera da posse de Jair Bolsonaro como Presidente da República, em 31 de dezembro de 2018 [Lucas Martin/Jornalistas Livres]

Na coluna da semana passada, comentei sobre a presença da bandeira de Israel nos atos antidemocráticos do último dia 8 de janeiro, e o que isso representa em termos simbólicos para o bolsonarismo, bem como para a extrema-direita ao redor do mundo. Como comentei, as bandeiras são utilizadas na contemporaneidade como elementos que traduzem ideias e ideais políticos, em diferentes espaços e contextos. Ao mesmo tempo em que bandeiras são hasteadas e empunhadas no Brasil – representando valores opostos à civilidade e tolerância –, em Jerusalém, são impedidas de serem hasteadas bandeiras de liberdade.

Após 18 meses na oposição, Benjamin Netanyahu retornou ao poder em Israel pela sexta vez, aliado a uma tenebrosa coalizão que possui figuras como Itamar Ben-Gvir, atual ministro da Segurança Pública, do Poder Judeu – que pode ser descrito como o partido fascista de Israel – e Bezalel Smotrich, do partido Sionismo Religioso – partido conservador ortodoxo que defende a aniquilação dos palestinos em toda a Palestina histórica. Essas duas figuras são representações do auge do estado etnocrata israelense. Nesse novo contexto, em que a coalizão liderada pelo Likud detém 64 cadeiras das 120 no parlamento, as forças mais radicais e fascistas passaram a operar no centro da arena política israelense para destruir a Palestina e o povo palestino.

Ben-Gvir, como ministro, ordenou a proibição das bandeiras da Palestina nos espaços públicos, como uma nova fase da escalada do governo de Netanyahu contra a população palestina no país. Recentemente, Ben-Gvir voltou a invadir a Mesquita de Al-Aqsa, um dos locais mais sagrados do Islã, cuja visita só é permitida a praticantes da religião. Suas ações foram tão estapafúrdias que geraram uma reação imediata de ministérios das Relações Exteriores de vários países, incluindo Brasil, que emitiram diversas notas de repúdio sobre a incursão de um político extremista na mesquita, ao pôr em xeque o status quo histórico e legal de Jerusalém.

As medidas tomadas por Ben-Gvir são parte de um longo processo de agressões contra os palestinos, que vão desde a prática de genocídio e outros crimes contra a humanidade até a proibição de símbolos nacionais. O que se observa na política israelense é o esgotamento retórico daquilo que eles promoveram no mundo como a “única democracia do Oriente Médio”. Essa falácia está cada vez mais enfraquecida pela sanha de lideranças fascistas em querer extirpar na face da terra aquilo que não são eles – no caso, portanto, os árabes e sobretudo os palestinos.

O pressuposto do regime democrático é o respeito às minorias políticas e o seu direito de existência – tudo o que não ocorre em Israel. A democracia não pode coexistir com apartheid, não importa sua justificativa. Pois, uma vez que se permite algo assim, a alteridade é desumanizada e, logo, descartável. O verniz que Israel transmitia de “democracia” se desfaz há algum tempo, dado que é inaceitável denominar como democracia um estado que institucionaliza um regime de apartheid!

A questão é que isso não é novidade na cena política israelense. Itamar Ben-Gvir, por exemplo, esteve entre aqueles que comemoraram a morte de Yitzhak Rabin, junto de radicais de extrema-direita que detestavam a ideia de firmar eventuais “acordos de paz” com os palestinos – a saber, os Acordos de Oslo. Depois de 27 anos, após ter seu discurso repetido milhares de vezes, aquilo que era extremista demais, que não deveria ser levado a sério, passou a ganhar centralidade na política israelense, com a manutenção do apartheid e seu aprofundamento. Ano passado, Itamar Ben-Gvir saiu às ruas do bairro palestino de Sheikh Jarrah, em Jerusalém ocupada, com uma arma carregada nas mãos. Nessa situação afirmou “Nós somos senhores daqui, lembrem-se disso, somos nós que mandamos”, “Se eles [os palestinos] jogarem pedras, atirem neles!”.

Desta maneira, proibir da bandeira palestina em público e equipará-la ao que consideram “terrorismo” é reflexo de esforços para resgatar (à força) certa reputação internacional – hoje, em meio a ameaças ao status quo israelense nos fóruns multilaterais e junto das demais nações da comunidade internacional. Além disso, é uma tentativa de silenciar a voz da esperança, daqueles que acreditam de fato na paz e na justiça. Hoje, a bandeira da Palestina traz medo aos próceres do estado israelense que temem por suas condenações no contexto do Tribunal Penal Internacional (TPI), por crimes de guerra e lesa-humanidade, sob esforços do governo palestino, mediante atuação de seu chanceler, Riad Al-Maliki, em obter da Corte Internacional de Justiça (CIJ) uma posição legal sobre a ocupação e os assentamentos sionistas na Cisjordânia.

Em 2022, apesar das dificuldades em materializar uma luta de um povo em diáspora e de reuni-los sob uma bandeira e sob o mesmo hino, devido à distância e às dificuldades de articular a resistência em certos territórios – muitas vezes hostis à presença palestina –, a luta progrediu. Conseguimos derrotar uma faceta do sionismo no Brasil que impedia o bom diálogo com a Palestina, representada pelo ex-presidente extremista Jair Bolsonaro. Além disso, a solidariedade à causa se fez presente em um dos maiores eventos esportivos, a Copa do Mundo do Catar, que teve como um dos protagonistas a seleção do Marrocos – a surpresa da Copa – e que trouxe consigo, como coadjuvante, mas sempre presente em seus corações e nas chuteiras, a Palestina histórica.

Torcedores seguram uma bandeira da Palestina com a inscrição Palestina Livre durante a partida do Grupo D da Copa do Mundo da FIFA Qatar 2022 entre Tunísia e Austrália no Al Janoub Stadium em Al Wakrah, Qatar. [Foto de James Williamson – AMA/Getty Images]

A luta continua e estaremos cada vez mais fortes, pois o que nos move é uma causa nobre: a terra dos homens é, realmente, de todos os homens? Por isso…

Não me Canso de Falar

Não me canso de falar sobre a diferença tênue

entre as mulheres e as árvores,

sobre a magia da terra, sobre um país cujo carimbo

não encontrei em nenhum passaporte.

Pergunto: Senhoras e senhores de bom coração,

a terra dos homens é, como vós afirmais, de todos os homens?

Onde está então o meu casebre? Onde estou eu?

A assembléia aplaudiu-me durante três minutos,

três minutos de liberdade e de reconhecimento…

A assembleia acaba de aprovar

o nosso direito ao regresso,

como o de todas as galinhas e todos os cavalos,

a um sonho de pedra.

Aperto-lhes a mão, um a um, depois faço uma saudação,

inclinando-me…

e continuo a viagem para outro país,

onde falarei sobre a diferença

entre miragens e chuva.

E perguntarei:

Senhoras e senhores de bom coração,

a terra dos homens

é de todos os homens?

Mahmoud Darwish (1941-2008)

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.