Na madrugada de 25 de janeiro de 1835, uma revolução sacudiu a cidade Salvador, dirigida por homens e mulheres negras escravizados de origem Haussá, Fulani, Yorubá, Aio Quija e Nagô, que ficou conhecida na historiografia brasileira como a Revolta dos Malês, um importante movimento antiescravidão que deu uma grande lição de garra e luta pela liberdade que engrandece a história das lutas sociais no Brasil, com seus feitos praticamente omitidos pela historiografia oficial e sem o merecido registro nos livros de história e no currículo das escolas brasileiras.
Malê era o termo usado no Brasil para designar os negros muçulmanos que sabiam ler e escrever em língua árabe. Eram denominados “professores”, devido sua capacidade superior e sua cultura, comparadas com as dos colonizadores portugueses. Essas pessoas escravizadas tiveram o privilégio da descoberta de ouro e diamantes e conseguiram garimpar nos rios brasileiros e mesmo nos córregos sob o comando dos portugueses.
Embora não representassem a hegemonia religiosa dos escravizados africanos, os Malês tinham um peso significativo por serem uma população que sabia ler, escrever e eram dotados de uma cultura bem mais larga do que muitos senhores de escravos. A presença do Islã na Bahia foi um dos fatores mais importantes e a mola das rebeliões de negros escravizados, sendo essa a razão por que os negros que a praticavam a religião islâmica no Brasil eram revolucionários orgulhosos, revolucionários com autoestima.
Nem todos os africanos que viviam em Salvador e no Recôncavo baiano eram muçulmanos, embora os líderes Malês tivessem a clareza da necessidade de convidar escravos libertos de todos os grupos étnicos e religiosos para tomar parte na revolta.
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Os líderes da revolta de 1835 se apropriaram do acúmulo provocado pelas revoltas ocorridas desde a Conjuração Baiana, em 1789-99, e nas sucessivas revoltas ocorridas entre 1807 e 1835. Os Malês passaram e se mobilizar e planejar a revolta que eclodiria na última noite do Ramadã daquele ano, como parte da soma dos movimentos conduzidos pelas associações, clubes e grêmios abolicionistas para a libertação dos escravizados e a eliminação do tráfico de pessoas escravizadas.
As razões das diversas revoltas antiescravistas ocorridas na Bahia do século XIX, foram a insatisfação com a escravidão, o regime de humilhação, torturas e assassinatos e a discriminação racial praticada contra eles, o ódio e a intolerância religiosa praticada pela Igreja Católica contra africanos de várias tradições religiosas, que os forçava a se converter ao catolicismo.
O sociólogo, jornalista e escritor Clóvis Moura escreveu que a revolta dos escravos baianos de 1835, não foi uma eclosão violenta e espetacular surgida espontaneamente ou de um incidente qualquer e sem plano preestabelecido, “mas uma revolta planejada nos seus detalhes, precedida de todo um período organizativo – fase obscura de aliciamento e preparação – sem a qual não se poderá compreender as proporções que alcançou em uma das principais províncias do Império”. (Moura, 1988, p. 174)
Para os Malês, a inspiração revolucionária foi encontrada nos versos do Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos, que lhes dava energia e forças para lutar contra as injustiças praticadas contra os negros, a emancipação dos escravizados e a liberdade para exercer seus rituais religiosos, já que, do ponto de vista religioso, os africanos viviam à margem da lei, pois a Constituição brasileira de 1824 estabelecia o catolicismo como religião do Estado, a única permitida a celebrar cerimônias públicas, construir e manter templos, enquanto as religiões africanas eram perseguidas e tratadas como caso de polícia.
Reuniões passaram a ser realizadas nas casas dos escravos libertos, nas senzalas, nas mesquitas e terreiros, nas quais se misturavam as orações islâmicas, aulas de religião, de escrita e recitação dos versos do Alcorão, e de onde o imam Mala Mubakar fez o chamado ao Jihad (resistência), escrito na forma de um documento em árabe no qual pedia aos muçulmanos e às demais pessoas escravizadas que se preparassem para a revolta.
Os planos de tomar Salvador e libertar todos os negros e negras escravizados não tomaram o rumo planejado pelos líderes da revolta. Depois de delatados e atacados de surpresa pelas forças policiais do Império, foram obrigados a antecipar o início da revolta. Embora surpreendidos, muitos dos revoltosos já estavam reunidos e vestindo roupas típicas islâmicas, que as autoridades policiais definiram como “vestimentas de guerra”.
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O que veio em seguida, foram enfrentamentos entre os revolucionários que haviam saído às ruas convocando outras pessoas escravizadas e os libertos a se unir à revolta. Na sequência, atacaram o Palácio do Presidente da Província e os quartéis, enquanto enfrentavam as tropas oficiais e as fragatas de guerra ancoradas no Porto de Salvador.
A revolta de 1835 foi planejada com detalhes, envolvendo vários líderes de diferentes etnias e religiões que mobilizou entre seiscentos e mil pessoas, com uma preparação sem a qual não teria envolvido tantos homens e mulheres bravas, de muito valor e admirável coragem e lealdade com os princípios islâmicos, que se juntaram para lutar por liberdade e justiça, tomado as proporções e os êxitos que alcançou numa das principais províncias do Império.
Após os confrontos, deu-se uma verdadeira carnificina, pois era evidente a superioridade dos armamentos das forças oficiais, pois enquanto os Malês estavam armados com lanças, espadas, porretes e algumas poucas pistolas e espingardas, os policiais portavam pistolas, baionetas e farta munição. Os revoltosos foram encurralados no Quartel da Cavalaria, localizado em Água de Meninos onde se deu a batalha final, antes do nascer do sol daquele domingo de 25 de janeiro de 1835.
Estava sufocada a grande revolta dos escravos, uma ação revolucionária de grande heroísmo de negros e negras contra a escravidão e os maus tratos, cercada de fé e esperança na causa da liberdade. Ao final, mais de cem rebeldes tinham tombado e tiveram seus corpos jogados em uma cova comum no cemitério de Salvador. Mais de 500 foram presos. Muitos morreram afogados, fugindo das balas da polícia, outros nas prisões, vítimas de tortura ou de tétano. No confronto morreram 14 soldados das forças oficiais.
Glória eterna à memória dos homens e mulheres, heróis e mártires de todas as raças e credos religiosos que se uniram e lutaram no Ramadã de 1835 contra as injustiças e ousaram tomar o céu de assalto, para pôr fim a escravidão no Brasil e conquistar a liberdade.
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