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Soldados israelenses em Gaza ostentam má conduta

Yasser Murtaja, o primeiro jornalista morto na Grande Marcha do Retorno

Yasser Murtaja, jornalista, cinegrafista e fotógrafo morto por um franco-atirador israelense enquanto cobria a Grande Marcha do Retorno, na Faixa de Gaza, em 6 de abril de 2018
Yasser Murtaja, jornalista, cinegrafista e fotógrafo morto por um franco-atirador israelense enquanto cobria a Grande Marcha do Retorno, na Faixa de Gaza, em 6 de abril de 2018

A gaiola

No dia 30 de março de 2018, Dia da Terra, cinquenta mil palestinos marcharam aos limites da fronteira que separa a Faixa de Gaza do resto do mundo. Não eram soldados. Eram pessoas comuns: homens, mulheres, idosos e crianças que, ombro a ombro, se levantaram para exigir o direito a dignidade, liberdade e igualdade, o primeiro dos direitos estipulados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). Entre os presentes na Grande Marcha do Retorno, os mais religiosos aproveitavam a sexta-feira para rezar em grupo, enquanto os mais novos empinavam pipas que voavam para mais longe que qualquer um deles jamais fora. Muitos levantavam as mãos, não para agredir, mas para exibir as chaves das casas de onde foram expulsos para dar lugar à criação do Estado de Israel, durante a Nakba ou “catástrofe” em 1948; assim, lembrar ao mundo que o direito de retornarem a sua terra jamais se cumprira, embora a Organização das Nações Unidas (ONU) insista em reafirmá-lo sob a Resolução 194.

Na segunda semana de manifestação, em meados de 6 de abril, o jovem cinegrafista e fotojornalista Yasser Murtaja registrava as crianças voando suas pipas e lembrava da liberdade que sentia quando fazia o mesmo. Nascido e criado no território espremido entre o Mar Mediterrâneo e o Estado sionista de Israel, Murtaja conhecia uma Gaza diferente dos noticiários. Via ali um lugar onde, apesar de todas as dificuldades, as relações entre o povo, sua terra e sua história permaneciam intactas na memória, mesmo após décadas de ocupação. Essa era a mensagem que queria enviar para além da fronteira e esse era o motivo para estar presente naquele dia.

LEIA: Com morte sempre à espreita, palestinos existem porque resistem

Além de cumprir seu papel como palestino, Murtaja estava a trabalho na Grande Marcha do Retorno, como profissional de imprensa, ofício estampado em seu capacete e colete à prova de balas. Como jornalista, ficou conhecido pela cobertura no resgate de Bisan Daher, uma menina que passou horas soterrada com os mortos de sua família após Israel bombardear sua casa. Murtaja se enfiou no meio dos escombros para filmar; porém, conquistando a menina com seu sorriso, acabou ajudando no resgate. Desde então, percebeu que sua câmera poderia servir como ferramenta para salvar vidas. Sua cobertura na Grande Marcha do Retorno visava captar imagens de dentro do território e distribuí-las para além da fronteira, mostrando ao mundo que os palestinos estavam mais uma vez sendo soterrados enquanto se manifestavam pacificamente.

Eu estava nervoso. Não sabia o que fazer. Devo continuar gravando ou ajudar os socorristas?

Yasser Murtaja, 2014

Quando se juntou às manifestações na região de Khan Yunis, o jornalista sorridente já era considerado um ídolo, principalmente pelas crianças, que viam nele o herói capaz de voar com seu drone para além das barreiras da ocupação. No entanto, a realidade era que ele estava tão preso dentro daqueles muros quanto qualquer outro. Naquele dia, a 350 metros da linha verde, o jornalista palestino foi atingido no estômago por um disparo de munição real – provavelmente expansiva – que atravessou o colete a prova de balas e derrubou no chão. Companheiros tentaram socorrê-lo, sem sucesso. Nos braços de seu povo, Yasser Murtaja olhou para o céu e avistou, pela última vez, as pipas coloridas de Gaza.

Asas cortadas

Os eventos decorridos desde a criação do sionismo culminaram na Grande Marcha de Retorno; tragicamente, também na morte de Yasser Murtaja e outros palestinos que lutam por uma vida digna e igual a de todas as outras pessoas em países com o mínimo de liberdade. Murtaja era jovem. Para ele, o conceito de liberdade era voar e conhecer outros lugares. Por diversas vezes, recebeu convites para participar de congressos e eventos no exterior, mas isso nunca foi possível, pois o conceito de liberdade do Estado de Israel depende do encarceramento em massa dos palestinos, incluindo a céu aberto, ao cercá-los com muros sob a mira dos fuzis, para neles testar seu aparato bélico então exportado a todo o resto do mundo “livre”.

A primeira vez em toda a minha vida que tive sucesso em viajar foi ontem, mas estou de volta. Fiquei no lounge egípcio, e queria entrar no avião ou somente ver uma aeronave. Em vez disso, o que vi foi a humilhação e opressão do povo de Gaza, das quais há o suficiente para encher um livro. Os egípcios devolveram três ônibus de passageiros, alegando razões de segurança no Sinai.

Yasser Murtaja, 9 de fevereiro de 2018, dois meses antes da Grande Marcha de Retorno.

Atirando em pássaros

O exército israelense alegou que os antecedentes criminais do jornalista os levaram a acreditar que Murtaja coletava informações com um drone para inteligência do Hamas. Avigdor Lieberman, ministro da Defesa israelense, declarou que: “Qualquer um que voe drones acima dos soldados de Israel, deve saber que se coloca em risco”. Então alegou: “Vemos dezenas de casos de militantes do Hamas disfarçados de médicos e jornalistas”.

Cinco dias após o assassinato, o Centro de Informações sobre Inteligência e Terrorismo (ITIC) do regime israelense, também publicou um relatório acusando o jornalista de ser capitão do Hamas. O documento não apresentou uma única evidência que confirmasse a acusação; o mais próximo foi insistir que, segundo informantes secretos, a família da vítima recebeu condolências de um dirigente do Hamas. Depois de cinco longos dias de suposta investigação, Israel concluiu que a morte de Murtaja e outras 17 pessoas era uma “manipulação”.

A conclusão do exame conduzido pelo ITIC após a Operação Margem Protetora foi que a lista dos “17 jornalistas que foram mortos” é uma manipulação destinada a apoiar a falsa alegação de que Israel havia matado deliberadamente um grande número de jornalistas, cometendo assim “crime de guerra” (pelo qual os palestinos exigiam que os “assassinos” fossem levados a julgamento em tribunais internacionais). Tudo isso é parte das táticas facciosas adotadas pelo Hamas e seus órgãos afiliados, ao divulgar a lista de palestinos mortos em nossa operação, além de campanha política, propaganda e ataques em âmbito legal contra o Estado de Israel. A campanha atualmente travada no caso de Yasser Murtaja é uma manifestação atual dessas táticas.

Centro de Informações sobre Inteligência e Terrorismo (ITIC)

Mutassem – irmão de Murtaja, último a segurar sua mão, ainda na ambulância –confirmou que, ao saírem de casa, o repórter optou por levar somente sua câmera de mão. “Ele não estava com o drone naquele dia, por medo de que seu equipamento fosse abatido”, reiterou.

O jornalista assassinado era conhecido por suas imagens aéreas, principalmente após o lançamento do documentário Surviving Shujayea, publicado pela rede Al Jazeera. Dizer que ele operava um drone próximo a Linha Verde ou que tinha ligações com o Hamas foi a mentira que Israel encontrou para se “isentar” do assassinato e culpar a vítima por sua própria morte. Sem condições para sustentar as acusações de Lieberman, as forças de ocupação israelense confirmaram não haver uso de nenhum drone próximo à cerca de fronteira naquele dia.

Murtaja foi o primeiro jornalista assassinado na Grande Marcha de Retorno. Ele estava devidamente identificado como profissional de imprensa, o que o caracterizava como civil não-combatente. No mesmo dia, outras nove pessoas foram assassinadas, além de 1.350 feridas, das quais, segundo o Crescente Vermelho da Palestina, havia 400 vítimas de munição real.

Apenas no dia em que Murtaja foi assassinado, outros sete jornalistas foram atingidos. Nenhum deles representava risco a civis israelenses ou mesmo à integridade física dos soldados de serviço ao longo da fronteira. Atirar em um profissional de imprensa foi uma prática intencional da ocupação durante toda a Grande Marcha do Retorno – ainda empregue –, com objetivo de intimidar e impedir que jornalistas exibam a verdadeira face da ocupação. Após o assassinato de Murtaja, o Sindicato dos Jornalistas Palestinos emitiu um comunicado para responsabilizar Israel pelo crime. O grupo internacional Human Right Watch (HRW) publicou um relatório denunciando ordens superiores para que os soldados de Israel utilizassem munição real contra a manifestação civil.

Para os palestinos, sobretudo os residentes de Gaza, não há outra opção a não ser se manifestar e denunciar os abusos aos quais são submetidos. A Faixa de Gaza é uma pequena porção de terra. Israel controla todo seu entorno, incluindo suas fronteiras. O estado sionista impõe embargos que roubam a liberdade e autonomia palestina, ao aprisionar dois milhões de seres humanos em um nível de subsistência, bombardear fábricas de bens agropecuários e ração animal e restringir o volume de alimento que entra no território como ajuda humanitária, baseado nas calorias mínimas que precisam ser consumidas para que uma pessoa não morra de fome. Desta maneira, o único gosto de liberdade sentido por uma criança em Gaza é subir suas pipas no ar, assim como para o jornalista palestino era subir seu drone.

Murtaja era o tipo de pessoa que todos amavam. Quando não estava trabalhando, conversava as pessoas, sempre procurando uma maneira de ajudar.

Mutassem Murtaja, 2022

 

Uma das maneiras que Murtaja encontrou para ajudar seus concidadãos foi dar aulas de fotografia, para que outros como ele pudessem mostrar ao mundo as belezas de seu povo, seu país e sua cultura. Um de seus primeiros alunos foi seu irmão, que ainda hoje é jornalista em Gaza.

Yasser Murtaja foi adotado como um filho da Palestina, líderes políticos compareceram a seu velório para prestar homenagens e respeito à sua família, mesmo que o jornalista não pertencesse a nenhum de seus partidos – diferente da acusação sionista. A única bandeira posta sobre seu caixão foi a da Palestina, pela qual morreu sem que pudesse vê-la tremular como a de qualquer Estado livre. Em seu enterro, o céu estava limpo e claro, mas não havia uma única pipa no ar.

Duas semanas antes de morrer, Yasser Murtaja postou uma foto tirada com seu drone sobre o porto de Gaza. Sua legenda dizia:

Espero que chegue o dia em que eu possa registrar essa imagem quando estiver no céu e não no chão! Meu nome é Yasser, tenho 30 anos, moro na cidade de Gaza e nunca viajei na minha vida!

24 de março de 2018

Durante as manifestações da Grande Marcha de Retorno, de 2018 a 2019, os números estimados pela ONU e Anistia Internacional apontam que 223 palestinos foram mortos pelas forças da ocupação; aproximadamente 23 mil ficaram feridos; do lado israelense, quatro soldados foram feridos e não houve um morto sequer.

Entrevista concedida por Mutassem Murtaja (irmão de Yasser Murtaja) a Lucas Siqueira, tradutor Jehad Afagani, 2022.

Documentário ‘A Fotógrafa’

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