Mochilão MEMO: Hebron, a cidade de Abraão

Um dos lugares mais esperados para conhecermos na Palestina histórica era Hebron (Al-Khalil), na Cisjordânia ocupada, cidade onde o profeta Abraão se estabeleceu conforme a tradição das três grandes religiões monoteístas fundadas na região.

“E Abraão mudou suas tendas, e foi, e habitou nos carvalhais de Manre, que estão junto a Hebron; e edificou ali um altar ao Senhor”

Gênesis 13:18

Saímos do centro de Ramallah em uma van local. A paisagem seria uma das mais lindas, não fosse pelo muro do apartheid, que separa os palestinos de sua própria terra. Alguns garotos sentados atrás de nós, com uma dificuldade tão grande quanto a minha de falar inglês, arriscaram um “where are you from?”. Essa foi a deixa para começar um diálogo que se estendeu por mais de uma hora com ajuda do Google Tradutor. A viagem duraria bem menos se não houvesse tantos checkpoints israelenses atrapalhando o trânsito.

Um dos garotos palestinos, W., se mostrou extremamente interessado em saber sobre o que dois brasileiros estavam fazendo em uma van amarela rumo a Hebron. Expliquei que queria escrever e fotografar a situação no país para que outros brasileiros soubessem um pouco mais sobre a Palestina e como vive seu povo. Minha resposta deixou W. e os outros ainda mais interessados em compartilharem conosco suas histórias e seus problemas cotidianos.

A certa altura da conversa, os idiomas inglês, árabe e português pareciam um só. Falávamos um idioma universal e a única barreira que tínhamos era o muro ao nosso redor – por sinal, nosso assunto principal. Os jovens palestinos nos mostraram o quão perto Jerusalém é de Hebron, mas que, devido ao muro, se torna tão longe e, por vezes, inalcançável. W. nos contou que seus documentos foram apreendidos por soldados israelenses e, por justamente não os possuir em mãos, precisa pular o muro para chegar a Jerusalém e orar na Mesquita de Al-Aqsa – entrada clandestina na capital de seu próprio país. W. chegou a nos mostrar o ponto onde ele e os amigos costumam atravessar.

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A ocupação israelense na Palestina, sobretudo na cidade de Hebron, é deveras complexa. Tento resumi-la a seguir. Os Acordos de Oslo entre israelenses e a nascente Autoridade Palestina determinaram que o território da Cisjordânia seria dividido, em tese, em zonas A, B e C: Área A sob administração completa da Autoridade Palestina; Área B, mista entre Autoridade Palestina e o Estado de Israel; e Área C, sob administração completa do estado de Israel. Na prática, nada disso deu certo, visto que soldados e colonos sionistas continuaram a tomar e ocupar terras palestinas, muito embora seja considerado ilegal pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pela maior parte da comunidade internacional.

Rua da cidade Antiga de Hebron ( Al Khalil) [Lucas Siqueira]

Hebron recaiu entre a Área B e a Área C. Os assentamentos ao redor da cidade abrigam uma das comunidades judaicas mais extremistas e violentas instaladas em terras palestinas: Kiryat Arba. Com uma população de oito mil israelenses, essa comunidade serve como posto avançado do exército israelense dentro da Palestina, onde soldados podem exceder até mesmo o número de colonos – também fortemente armados.

Assim que chegamos, W. se ofereceu para ser nosso guia. Nos convidou para comer falafel e tomar chá – quando fui pagar, W. já havia pagado a conta. W. nos convidou para conhecer sua casa e sua mãe e ficou bastante surpreso e satisfeito quando concordamos. Da casa de nosso anfitrião foi possível ver toda a cidade de Hebron e como as bandeiras israelenses tremulam no topo das bases militares espalhadas pela cidade. Depois de tomarmos um café com W. e sua mãe, caminhamos por entre as oliveiras centenárias até a Cidade Velha. Cruzamos com alguns soldados pelo caminho. Para nosso novo amigo, o risco de que algum daqueles soldados o prendesse por não ter seus documentos era enorme, então ele caminhou conosco apenas até certo ponto da Cidade Velha.

O comércio em Hebron – certa feita, um dos maiores do Oriente Médio, em uma das cidades mais antigas do mundo – evidencia a face hedionda da ocupação. A constante presença do exército israelense, a humilhação e a violência que estes causam aos palestinos, tudo isso levou muitos comerciantes a se retirarem do local, motivo pelo qual muitas lojas permanecem vazias. As lojas ainda abertas possuem uma tela de proteção como cobertura, para evitar que o lixo jogado de cima pelos colonos atinja trabalhadores e suas mercadorias, exibidos na rua. Manter o comércio nessas condições, olhando para cima daquelas telas e vendo aquele monte de lixo acumulado sobre suas cabeças é revoltante e me fez pensar: Que tipo de ser é capaz de jogar lixo em pessoas que estão tentando sustentar suas famílias? Ou como nomear alguém que atira ovos, urina e fezes em cima dos outros?

Olhando para aqueles senhores de keffiyeh, ou para os comerciantes mais jovens, tive a sensação de que trabalhar naquele mercado e naquelas condições é a mais pura maneira de dizer para ocupação israelense que a resistência palestina permanece viva e forte. Como W. nos disse, cada vez que os israelenses demolem uma casa, eles abastecem com pedras a resistência palestina.

Passando pelos checkpoints, sob a mira dos fuzis, baixados somente quando se levanta a câmera de um estrangeiro, senti um pouco do medo que as crianças palestinas sentem todos os dias para ir à escola, como um grupo que vimos a nossa frente. O cenário de Hebron parece de guerra. No entanto, de um lado se encontra um exército armado até os dentes; do outro, crianças, idosos, mulheres e trabalhadores. Não há qualquer romantismo possível, a ocupação é o nível mais baixo da podridão humana.

Após cruzar o mercado, passando pela rua dos mártires, chegamos a nosso destino: o Túmulo dos Patriarcas, conhecido em árabe como Mesquita Abraâmica. Esse complexo religioso, conta a história, abriga o Túmulo de Abraão e o local de sepultamento de seus filhos e esposas. Trata-se de um lugar sagrado para as três religiões monoteístas, já que Abraão é considerado o “pai de todas as nações”. Esse templo, não obstante, guarda uma memória ainda mais cruel do que o arremesso de lixo que presenciamos no caminho.

Em 1994, logo após a divisão dos territórios, o supremacista judeu Baruch Goldstein entrou armado na mesquita e esperou até que os muçulmanos se prostrassem com as cabeças no chão, em posição de prece, para disparar contra eles. Goldstein assassinou 29 palestinos e feriu outras 125 pessoas. O atentado desencadeou uma série de respostas e tréplicas. Do lado sionista, além das operações militares, houve punições coletivas e imposição de subdivisões a uma cidade já dividida. Hebron seria novamente segmentada em zonas H1 e H2: um lado para os muçulmanos, outro para os judeus. O mesmo foi imposto ao Túmulo dos Patriarcas.

Estar em Hebron e ver com os próprios olhos o que é a colonização é ainda mais devastador do que podemos descrever. Antes de adentrar ao templo sagrado, uma soldada que apontava um fuzil na altura de nossos estômagos me perguntou se eu carregava uma faca. Fiquei indignado, mas respondi obviamente que não. Passando pela catraca, uma outra soldada – de no máximo 20 anos – nos perguntou, da forma mais arrogante possível, o que iríamos fazer ali e qual seria nossa religião. Gostaria do fundo do coração de dizer a verdade, mas me fiz de idiota mais uma vez ao afirmar que sou cristão e insistir que Abraão estava na Bíblia.

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No Túmulo dos Patriarcas, centenas de muçulmanos oravam e prestavam respeito ao mortuário daqueles que foram os primeiros personagens do monoteísmo. Contudo, a maioria ali presente era de estrangeiros, pois o Estado de Israel mantém seus cães de guarda na porta do santuário universal, não para garantir que outro Goldstein repita seu massacre, mas para impedir que os palestinos nativos visitem o local, ao reprimi-los e humilhá-los – sobretudo as mulheres.

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Nota: Todos os textos do Mochilão MEMO são produzidos em trânsito; por gentileza, peço que compreenda que pode haver falhas ou erros que serão corrigidos ao longo da viagem. Obrigado a todos pela compreensão.

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