Existem três organizações de correspondentes e jornalistas estrangeiros no Brasil, sendo que a menor delas está na capital, Brasília, e inclui 15 jornalistas que trabalham com várias agências de notícias internacionais. Outra fica no Rio de Janeiro, trabalha com 136 veículos de imprensa estrangeiros e conta com 125 correspondentes de 25 países – inclusive israelenses. No entanto, não há, entre eles, correspondente árabes.
A mais antiga é a Associação dos Correspondentes Estrangeiros (ACE) em São Paulo, criada com o nome de “Sociedade da Imprensa Estrangeira” em 1977, por iniciativa de 30 jornalistas do exterior. A entidade foi lançada em evento na casa de Jean Rocha, correspondente da rede britânica BBC. Na época, o trabalho da categoria concentrava-se mais na cidade do Rio de Janeiro do que em São Paulo.
A organização foi fundada no período em que o Brasil sofria com a Ditadura Militar e seus profissionais operavam com diversas restrições de trabalho, tratados até mesmo como inimigos em potencial do regime. Agentes policiais e militares passaram assim a monitorar movimentos e telefones e os jornalistas estrangeiros foram também alvos de opressão, perseguição, prisão e execuções arbitrárias. Com o fim da ditadura, membros dessas organizações entrevistaram e se reuniram com as novas lideranças do país, como o presidente eleito Tancredo Neves, em 1985, o presidente Fernando Enrique Cardoso, em 1995 e, posteriormente, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, em clara indicação de mudança ao longo dos anos, que se refletiu no trabalho jornalístico.
Em 1999, a entidade atuante em São Paulo adquiriu o nome que mantém até hoje: Associação dos Correspondentes Estrangeiros (ACE). Lula e Dilma deram espaço e diálogo aos jornalistas. Contudo, problemas naturalmente surgiram. Foi assim com o correspondente americano Larry Rohter – repórter do New York Times e membro da organização –, em 2004, quando descreveu o então presidente Lula como “consumidor excessivo de álcool”. Neste contexto, o Ministério da Justiça agiu para não renovar o visto de trabalho de Rohter, o que levou a então presidente da entidade, a jornalista peruana Veronica Goyzueta, a conclamar protestos em São Paulo e no Rio de Janeiro e emitir uma nota dando a entender que a medida não era diferente das ações dos governos militares. Figuras políticas e partidárias anunciaram solidariedade às manifestações.
A ACE lançou dois livros: em 2003, com relatos dos associados sobre a guerra do Iraque, e em 2008, tratando da natureza do trabalho dos jornalistas internacionais no Brasil.
LEIA: Memória dos jornais árabes no Brasil
A associação foi criada para facilitar e organizar o trabalho dos jornalistas estrangeiros no país e lhes dar apoio e informações. Em 2005, foi convocada uma assembleia geral com a presença da maioria dos associados para definir objetivos, regras de funcionamento, mecanismo de eleição e condições de filiação. Entre as condições, pressupôs-se que o associado fosse um profissional estrangeiro a serviço de um veículo de comunicação internacional no Brasil, com residência no país e pagamento de assinatura anual.
Quanto aos direitos dos associados: cartão de sócio e identificação devida, presença em atos e eventos públicos, acesso pleno ao website da entidade, recebimento de informações referentes à cobertura da imprensa diária via e-mail, direito de votar e concorrer a cargos e descontos para participar e cobrir eventos. Os objetivos institucionais se resumem na importância de expandir a base de associados, adquirir uma sede permanente, desenvolver o site e outros canais de contato e organizar viagens para apresentação de jornalistas ao país.
A direção da entidade é composta por um presidente, um vice-presidente e um tesoureiro, com eleição para os três cargos a cada três anos. Seu trabalho é voluntário, sem remuneração.
Problemas e desafios
Segundo a associação, há cerca de 300 jornalistas estrangeiros no Brasil, aos quais o Itamaraty concede visto de entrada nos territórios por um período de apenas dois anos, renovável ao término do prazo. A lei, no entanto, prevê prazo de residência para jornalistas estrangeiros em quatro anos, renovado após seu termo. Segundo a ex-presidente do órgão, Veronica Goyzueta, “[jornalistas] muitas vezes têm de trabalhar em áreas remotas, onde há criminalidade, violência e conflito permanente pela terra”.
Talvez um dos incidentes mais marcantes tenha acontecido em fevereiro de 2016 com Juliana Barbassa e Pierre Guerra, correspondentes das revistas Americas Quarterly e US News And World Report, no estado de Rondônia. Ambos foram cobrir confrontos entre fazendeiros, mas foram agredidos e tiveram aparelhos e equipamentos roubados. A polícia se recusou a responder às queixas ou prestar assistência e passou, em contrapartida, a impor restrições a seu trabalho. O incidente levou a associação a emitir um novo comunicado no qual pediu à presidente Dilma que interviesse para apurar as ações da polícia, a despeito do direito assegurado pela Constituição brasileira de liberdade de imprensa. Apesar dos pesares, Veronica reconhece que “trabalhar hoje é muito melhor do que trabalhar na Ditadura Militar”.
Outro desafio é a escala continental do país, à medida que a maioria dos repórteres ainda se concentra no eixo Rio-São Paulo, inclusive distantes do centro de tomada de decisões na capital Brasília. Por outro lado, Veronica analisa que “quem trabalha em Brasília enfrenta o problema de se manter afastado dos grandes eventos culturais e sociais que São Paulo e Rio de Janeiro costumam receber”. Os desafios são corroborados por Jean Rocha – primeiro membro da associação –, que reitera: “A área do país é bastante ampla, o jornalista é muitas vezes obrigado a se deslocar de São Paulo à Amazônia para realizar seu trabalho”.
LEIA: 1.668 jornalistas mortos em 20 anos, uma média de 80 por ano (2003-2022)
Carlos Lins da Silva, autor do livro Correspondente internacional (Contexto, 2011), comenta: “Um dos maiores problemas enfrentados pelos correspondentes estrangeiros é que, após um período de permanência no Brasil, eles passam a ver os acontecimentos pelos olhos da mídia brasileira, o que remove a distância que o repórter deve manter entre si e os acontecimentos, para vê-los com maior imparcialidade e clareza”.
Em 2015, o governo do estado de São Paulo ordenou o despejo da associação de seu endereço na rua Boa Vista, com prazo de 30 dias. A entidade mantinha uma sala cedida pelo Estado no prédio da Defensoria Pública, no centro da capital paulista, e foi despejada sob alegação de corte de gastos. Os membros da associação denunciaram que sequer o prazo previsto foi respeitado. No mesmo ano, a ACE reiterou seu status de organização não-governamental, democrática, sem fins lucrativos.
Há quarenta anos, as associações de correspondentes estrangeiros vivem altos e baixos com o Estado brasileiro. Porém, ainda concede aos jornalistas que chegam do exterior uma alternativa – talvez a única – para obter informações necessárias para o desenvolvimento de seu trabalho de maneira fácil e rápida e para garantir o mínimo de proteção e reconhecimento, incluindo a jornalistas veteranos das mais diversas nacionalidades.
LEIA: Mochilão MEMO: Conferência do Sindicato de Jornalistas Palestinos
Artigo publicado originalmente em árabe pelo Instituto de Mídia Al Jazeera
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.