Passadas menos de duas semanas do terremoto que atingiu severamente a Turquia e a Síria, as tensões no eixo de poder de Ankara não param de crescer. O tema de fundo está no título. A república fundada por Kamal Ataturk pode deixar a Organização da Aliança do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e esta possibilidade vira todo o jogo de poder no Oriente Médio e Mundo Islâmico. A conseqüência direta pode ser muito positiva, com o rompimento das relações com o Estado Colonial do Apartheid na Palestina Ocupada (vulgo Estado de Israel). Tal medida iria ao encontro de uma posição estabilizada desde a década anterior, apontando que mais de 86% da população turca tem uma visão negativa diante da entidade sionista.
Caso a saída da aliança ocidental venha a ocorrer de fato, muda completamente o cenário da geopolítica de influência global (logo, se transformando em geoestratégia) e também no cenário doméstico da Turquia. No primeiro caso, o controle sobre a saída física de acesso ao Mar Negro, através da presença de marinha turca nos estreitos de Bósforo e Dardanelos, equivalendo a presença naval da OTAN na outra ponta. No estreito de Gibraltar, a Inglaterra controla uma ponta da saída do Mediterrâneo para o mar – violando explicitamente a soberania do Estado espanhol. Este por sua vez, viola a soberania marroquina, pois nos enclaves de Ceuta e Melilla, a herança franquista se faz presente, auxiliando as marinhas cruzadas em mares árabes.
A outra dimensão é doméstica, pois se essa decisão for tomada, de imediato redireciona as preferências dos países do ocidente, apontando as baterias contra o AKP, partido de Erdogan. Hoje a maior possibilidade é de uma grande aliança dos herdeiros do kemalismo (CHP e Y, seu racha mais recente de 2017) com o partido da esquerda do Curdistão (HDP) e possivelmente essa coligação contará com a simpatia de todos os países ocidentais. Evidente que caso esta relação se dê, de imediato a conta a ser acertada será não deixar a OTAN e menos ainda permitir o rompimento de relações com Israel. Dificilmente o MHP, partido de extrema direita que reivindica os governos das juntas militares (seguidas ditaduras turcas de 1960, 1971 e 1980, além do confuso protogolpe de 1997), pode constituir aliança com seus adversários diretos, sendo sempre um perigoso recurso de mobilização externa (através do que sobrou da Rede Gládio, por exemplo).
O mal estar com os EUA
Em julho de 2016 a Turquia experimentou um intento de golpe de Estado clássico, com sublevação de unidades militares e redes ergenekon. Importante explicar que essas redes são uma espécie de logias secretas onde juízes, procuradores, comandantes militares, empresários, financistas e pessoas influentes de juntam para atender a objetivos estratégicos. O manipulador por detrás do golpe fracassado foi o reverendo Fethullah Gülen, exilado nos EUA e comandante de um império de entidades “beneficientes”, através do sistema Hizmet (o serviço), à frente de universidades, escolas, hospitais, centros de atendimento e difusão.
A capacidade de mimetismo da rede FETO – comandada por Gülen – é de fato bastante avançada. Logo, a presença de membros e seguidores do “reverendo” em postos-chave de países ocidentais, incluindo os Estados Unidos, é considerável. A soma dos problemas listados até agora, mais as tensões de um momento pré-eleitoral, adicionam com a evidente instabilidade social advinda do terremoto de 2023. A percepção do gabinete de Ankara que Washington está apostando na mudança de comando na Turquia é mais que realista. Isso sem falar nos relatórios reservados do MIT (serviço de inteligência turco), onde se evidenciam a presença da espionagem estadunidense na região, para além do seu aliado estratégico, os invasores europeus na Palestina.
Uma visão crítica e complexa da Turquia de Erdogan
Qualquer análise um pouco mais consistente da política de Erdogan deve separar o cenário doméstico (e o tema chave do Curdistão), a política securitária turca (contando com a presença no Mar Egeu, a projeção de poder na Líbia e a rivalidade perigosa com a Grécia) e sua política externa baseada no tripé clássico: neo-otomanismo, pan-sunita (visando uma Ummah no século 21) e pan-túrquica (afirmando a dimensão estratégica no espaço pós-soviético de cultura túrquica e maioria islâmica). Sem esses elementos não é possível compreender minimamente a Turquia deste século, e menos ainda fazer a crítica necessária.
Recep Tayyip Erdogan chega ao poder ainda no formato parlamentarista em 2002. Era a ascensão de uma nova camada empresarial, distante da praça financeira de Istambul e se livrando da relação utilitária do kemalismo com o islã sunita. O AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento) prometia combinar o islã com a modernidade econômica e a eficiência governamental. Por sorte, no período anterior, foi negada a entrada da Turquia na União Europeia (por motivos evidentemente islamofóbicos), mantendo a autonomia da lira turca e sem se subordinar para a Troika européia (a junção do Banco Central Europeu, a Comissão Executiva Europeia e o FMI) sob hegemonia da Alemanha. Eventos drásticos, como um terremoto anterior a sua chegada ao poder e a tentativa de colocar a Turquia em um espaço próprio no Sistema Internacional radicalizaram seu governo.
Por isso insisto na necessidade de separar os níveis de análise. A situação mais delicada sem dúvida é a presença militar no norte da Síria alegando a necessidade de um território tampão para evitar ampliar os cenários de ação da esquerda turca. Por outra parte, pouco se vê deste mesmo gabinete de Erdogan quanto à cumplicidade do governo de Irbil (sede da administração regional curda iraquiana) com Israel e EUA. Os líderes dos dois maiores clãs curdos, os oligarcas líderes das famílias Talabani e a mais importante, Barzani, operavam com passaporte diplomático curdo até a segunda invasão dos Estados Unidos no Iraque. Tampouco podemos esconder que a coordenação com as forças especiais imperialistas não são mais exclusividade da direita curda, mas também de sua insurgência, operando a partir de Rojava e Qandil.
A percepção imediata é que a Turquia pode agir com vontade própria, sendo uma liderança no mundo islâmico majoritário (de maioria sunita), tendo o mesmo peso e envergadura que o Irã tem para o xiismo duodécimo, sua ampliação e aliados próximos. Ankara e Doha, representando a aliança estratégica com o Catar podem vir a modificar o “equilíbrio” de poder no Golfo e por extensão, em todas as rotas de petróleo, gás e derivados.
Washington X Ankara
Evidente que a análise realizada neste texto é quase uma evidência e de fato é prioridade para os estrategistas do Pentágono e do Departamento de Estado dos Estados Unidos. Os “falcões bipartidários de Washington” precisam evitar, a todo custo, a presença e atuação de uma Turquia voltada para os interesses dos países de maioria islâmica e deixando em segundo plano qualquer aliança com o ocidente.
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A verdade é que os EUA necessitam mais da presença da Turquia na OTAN do que ao contrário. Caso a saída da aliança ocidental venha a se consolidar, seria como uma revanche histórica ao Tratado de Sèvres e uma autêntica reversão da herança maldita de Sykes-Picot. Se Erdogan e seu gabinete decidam de forma resolutiva sair do pacto militar com as forças militares cruzadas, a história do século XXI estará definitivamente modificada, com a balança virando a favor dos países e territórios de maioria islâmica.
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