Vladimir Herzog é considerado símbolo da imprensa brasileira desde o tenebroso período da Ditadura Militar no país, que durou de 1964 a 1985. Desde a retomada da democracia, diversos livros foram publicados sobre Herzog e sua história, entre outras mídias. Seu brutal assassinato inspirou artistas e escritores a denunciarem as tragédias nacionais em suas obras. A canção de João Bosco e Aldir Blanc, “O bêbado e o equilibrista”, interpretada por Elis Regina, refere-se em um de seus versos a Clarice Herzog, esposa de Vlado.
Vladimir Herzog nasceu em 1937 na Iugoslávia, mas partiu com a família para a Itália em 1941, devido à perseguição contra os judeus. Tinha apenas quatro anos quando a família se estabeleceu em São Paulo. Na época, filosofia e direito estavam entre os cursos universitários de maior estima no país. Herzog escolheu filosofia, na Universidade de São Paulo (USP), e durante seus estudos passou a estagiar no jornal O Estado de São Paulo.
Herzog e um grupo de amigos viajavam a Argentina com certa frequência, onde produziam peças cinematográficas. No Brasil, ajudou a construir o mercado de dublagem ao português, ao tornar acessíveis filmes dos mais diversos idiomas. Sua experiência em cinema foi logo convertida à televisão. Herzog dizia: “A classe burguesa não tem problema com outras línguas, mas mais da metade do povo brasileiro é pobre e analfabeto e é preciso que tenham acesso à cultura”.
A grande virada em sua formação política parece decorrer de um encontro entre Vladimir Herzog e o filósofo francês Jean-Paul Sartre, em visita ao Brasil em 1960. A partir de então – também devido às circunstâncias nacionais, que culminaram no golpe militar de 1964 –, Herzog inclinou-se cada vez mais à esquerda e ingressou no Partido Comunista Brasileiro.
Herzog e Clarice se conheceram em 1962, mas partiram a Londres por medo da ditadura que tomou o Brasil, no mesmo ano de seu casamento, em 1964. No Reino Unido, Herzog trabalhou para a rede BBC. Clarice e os filhos voltaram ao Brasil, mas Herzog juntou-se a eles apenas após ser assegurado que não era procurado pelas forças da ditadura. De volta a São Paulo, trabalhou como professor na Fundação Armado Álvares Penteado (FAAP) e na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.
Em 1970, era diretor de telejornalismo da TV Cultura de São Paulo, órgão bastante visado pelo regime militar. O período representou o auge da censura à imprensa, à medida que a ditadura e seus agentes exigiam que profissionais distorcessem os fatos em favor do regime, sob risco de prisão e tortura. Herzog e sua equipe foram criativos, ao adotar códigos inovadores para manter o compromisso crítico da imprensa. Foi neste contexto que o presidente Ernesto Geisel deferiu a decisão para liquidá-lo.
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As forças do regime incumbiram uma unidade do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) para invadir a sede da TV Cultura em busca de Herzog, sob pretexto de que fora filiado ao Partido Comunista, então criminalizado. Herzog escolheu não se esconder e dirigiu-se de peito aberto à delegacia do DOI-CODI para nunca mais sair. Presos nas celas vizinhas relataram a tortura brutal à qual o jornalista foi submetido.
O governo tentou retratar sua morte como suicídio. No dia seguinte ao assassinato, distribuiu uma fotografia forjada na qual Herzog aparece supostamente enforcado em uma janela baixa, com os joelhos encostados no chão. A mentira carecia até mesmo de esmero. Em tese, suicidas não podem ser enterrado em cemitérios judaicos, mas o rabino Henry Sobel examinou o corpo e contradisse a versão da inteligência do regime para sepultá-lo devidamente. Seis dias depois do funeral, foi realizada uma missa inter-religiosa na Catedral da Sé, no centro de São Paulo. Oito mil pessoas se reuniram na praça, em uma manifestação de massa sem precedentes desde a imposição do Ato Institucional n° 5 (AI-5) em 1968. Parecia o primeiro passo para quebrar anos de silêncio e caminhar, pouco a pouco, à redemocratização.
Após o fim da ditadura, em 1985, diversas obras foram publicadas sobre Herzog, entre as quais, Um menino chamado Vlado (Instituto Vladimir Herzog, 2015) da jornalista Marcia Camargos. A autora comenta: “Muitos historiadores escreveram sobre Vlado e seus amigos, mas ninguém se dirigiu à nova geração, à geração mais jovem que nada sabe sobre o período da ditadura”. E reitera: “A importância de Vlado é que seu assassinato foi um momento crucial para o começo do fim daquele período sombrio da história do Brasil”.
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Clarice fundou um instituto com o nome do marido e mantém sua luta para que os serviços de inteligência e as Forças Armadas respondam na justiça pela tortura e assassinato do jornalista. Em 2013, durante o mandato de Dilma Rousseff, Clarice enfim conquistou reconhecimento do Estado de que Vladimir Herzog foi morto sumariamente sob tortura. Não obstante, ninguém foi responsabilizado. A impunidade assombra o futuro do país. Jair Bolsonaro – notório apologista da ditadura – chegou à presidência; seus apoiadores, golpistas de extrema-direita, pedem pelo retorno da ditadura, sob apelos de intervenção militar contra o novo governo eleito.
Vladimir Herzog sobrevive na memória nacional como um ícone da liberdade de imprensa. Sua biografia coincide com um período no qual muitas pessoas foram mortas pelo terrorismo de Estado. Dentre elas, o próprio Herzog.
A mídia brasileira, podemos dizer, escapou da censura das Forças Armadas, mas recaiu em uma nova fase de influência direta do capital privado – ainda controlado por poucas famílias da elite nacional, muitas delas aliadas diretas do regime militar.
Artigo publicado originalmente em árabe pela rede Instituto de Mídia Al Jazeera
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